domingo, 1 de junho de 2014

Breve apontamento sobre Porto d’Ave


Desenho original de 1937



Por José Abílio Coelho

A história, tal como o tempo, anda a passo travado. E se a vida que decorre do tempo assenta em pequenos, médios ou grandes episódios, aos quais podemos juntar os mais variados “estados de alma”, a história faz-se também de pequenos ou grandes contributos e alguma emoção. Sem emoção não há histórias, há relatórios.
Mas que tipos de história podemos fazer?
Há a chamada “grande história”, que nos fala do mundo, das nações, das grandes figuras e feitos do ser humano, cultivada em geral pelos génios ou por aqueles que se acham génios, e a “pequena história”, somatório do que parece insignificante, mas, matéria sem a qual não se conseguiria entender hoje mais que o essencial. Apesar de alguns académicos continuarem a desvalorizar aquilo a que chamam “história local” ou “pequena história”, que não é a mesma coisa mas que eles, na sua infinita sabedoria colocam na mesma arca, académicos esses que eu gostaria muito de ver fazerem as tais sínteses com que se armam em pavões sem os pequenos contributos... bom, mas isso são orações para outros altares e o que aqui importa dizer é que, a “pequena história”, ou aquilo a que chamam “pequena história” tantas vezes de forma pejorativa e que eu tenho simplesmente como História, vai-me surpreendendo todos os dias. Em particular a da minha terra.
 O que aqui fica, hoje, depois de uma tarde de domingo a “catar” fontes, é um pequeno contributo para a história da Póvoa, focado no lugar de Porto d’Ave, o mais importante da freguesia de Taíde.
Não falarei do que já está escrito, e muito é, tantos os livros publicados sobre a localidade. Apenas traço é um apontamento que pretendo que funcione como simples curiosidade.
Refiro-me à abertura do acesso do santuário da Senhora do Porto à estrada nacional Póvoa-Fafe. Até meados da década de 1930 ir ao santuário de Porto d’Ave, descer da estrada ao templo, só era possível a pé ou no máximo a cavalo, por estreitos caminhos. Não ia lá um automóvel, por exemplo. E o automóvel começava a tornar-se um bem de consumo diário para muita gente. Mas também lá não descia um bom carro de tração animal, uma carreta dos bombeiros. Descer a pé era remédio que todos tomavam.
Em meados da década de 1930, o médico e professor Dr. Francisco Vieira e Brito, um dos maiores, senão o maior benfeitor da irmandade, da qual foi juiz durante anos e anos, sonhou com a construção de uma estrada de acesso ao mosteiro. Por onde? Não era fácil, dadas as diferenças de cotas dos terrenos e sobretudo devido aos terrenos que podiam ser utilizados pertenceram a vários proprietários, com as dificuldades que sabemos existirem ao tempo para qualquer proprietário se desfazer de uns metros de courelas.

Francisco da Cruz Vieira E Brito


Vieira e Brito sonhou, lutou, investiu, empenhou-se e conseguiu o que planeara. Em dezembro de 1938 estava decidido que a avenida- isso, avenida – seria pelo lado poente, entre a estrada nacional e o adro do santuário. A planta estava pronta e há mais de um ano que havia sido enviada para Lisboa, para o ministério da tutelo, a fim de ser aprovada e de lhe ser concedido um subsídio para a construção. Não que o Dr. Vieira e Brito não fosse homem de a construir sem subsídios. Muito e muito mais que isso deu ele à irmandade, em vida e depois da morte. Mas porque quando chegou a juiz encontrou tudo tão ao abandono, tão velho, que há muito vinha gastando do seu bolso para renovar, alindar, substituir. Entre muitas dezenas de contos para portas, arranjos de muros, substituição de tetos, rebocos e pinturas de paredes. Deu 5 contos de réis (uma boa maquia, à época) para esta avenida. Mas, usando o seu prestígio – tinha sido diretor dos laboratórios de análises clínicas da Universidade de Coimbra, era professor em Braga…), continuou a lutar para que Lisboa ajudasse.
E em junho do ano seguinte (1940), o ministério das obras públicas lá aprovou, através do fundo de desemprego, um subsídio de 43.752$00 para a abertura da nova avenida e para que aquela a que ainda hoje chamam “arruado” fosse devidamente calcetada.
A obra arrancou pouco depois, tendo sido executada pela câmara, por administração direta.
Pouco depois, foi também aprovada a construção da rede elétrica ao lugar de Porto d’Ave, com 13.654$00, para cuja aprovação Vieira e Brito deu forte contributo.
O Dr. Francisco Vieira e Brito não sendo de Porto d’Ave, foi um dos grandes nomes da sua irmandade.
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Para conhecer melhor a figura de Francisco Vieira e Brito aceder o link:

http://dicionariodepovoenses.blogspot.pt/2012/02/francisco-da-cruz-vieira-e-brito-1893.html

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Alfredo da Silva Araújo



Noutra dimensão situou-se o Sr. Alfredo da Silva Araújo, fundador da fábrica da Abelheira. Também ele deu muitos contos de réis ao santuário, pagando do seu bolso muitas das obras que na década de 1930 ali foram feitas.
Era natural de São Miguel, da Vila das Aves, onde também possuía uma empresa: a fiação de Rebordões.
Aos bombeiros da Póvoa, ofereceu um automóvel – a primeira "automaca" – e um seguro de vida que cobria as necessidades de todos os soldados da paz da corporação. Em inícios de 1940. Não chegou a assistir ao “batismo” da ambulância, já que faleceu em inícios de março desse mesmo ano, uma década depois de ter instalado às portas de Taíde a fábrica da Abelheira, que tanta gente empregou.
Deixou quatro filhos: António, Armindo, José e Artur da Silva Araújo. Foi a enterrar na sua terra natal, São Miguel da Vila das Aves.
Foi outro grande benfeitor portodavense.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Subsídios para a história da instrução básica na vila da Póvoa de Lanhoso



Por José Abílio Coelho[1]
 
À direita, caiados de branco, os dois primeiros edifícios da escola primária da vila da Póvoa

PARTE I

Introdução

Durante séculos, o ensino, mesmo ao seu nível mais básico, foi um bem a que apenas alguns poucos tiveram acesso. Os conventos foram o local de eleição para se aprender a ler, a escrever e a contar, coexistindo com eles as aulas particulares lecionadas por mestres-escola que ensinavam, sobretudo, os filhos das elites, especialmente os rapazes pois as meninas eram mantidas, na sua esmagadora maioria, “convenientemente” iletradas.
É-nos, aliás, hoje muito difícil fazer sequer uma pequena ideia da reduzida quantidade de pessoas que já nos finais da centúria de setecentos sabia ler e escrever. E, no entanto, passaram apenas pouco mais de dois séculos. A esta distância (duzentos anos, muito tempo para uma simples vida mas período muito curto na larguíssima “agenda” da História), mais difícil se nos torna entender que, mesmo nos centros mais evoluídos da Europa, a leitura de livros e periódicos se processasse muitas vezes em voz alta por quem o soubesse fazer, perante plateias que, podendo ser até constituídas por indivíduos possuidores de muitos bens de fortuna, permaneciam iletrados. Para os finais do século XVIII, em França, Philippe Ariès fala numa outra inovação que começava a ganhar adeptos e que, hoje, nos parecerá porventura ridículo que fosse ainda uma técnica por poucos dominada, habituados que estamos à evolução das últimas décadas: o da leitura na intimidade, que permitia uma reflexão solitária[2]. Mas, mesmo para muitos daqueles que, já em pleno século XIX frequentavam escola, ler em casa, de forma solitária, significava muitas vezes soletrar apenas, obrigados a uma, duas, três leituras da mesma frase até compreenderem a mensagem que o texto comportava.
É verdade que, nos finais da centúria de setecentos, nas grandes metrópoles da Europa, onde as escolas cresceram em grande número e os processos de instrução se aprofundaram, especialmente após os “ventos de mudança” levantados pela Revolução Francesa e pelas grandes alterações políticas que se lhe seguiram, a prática da leitura (e da escrita) evoluiu com rapidez. O mesmo não aconteceu em Portugal onde, apesar do pronunciamento de 1820 e do interesse na divulgação das ideias novas defendida pelos Liberais que após a revolução ascenderam ao poder, o processo de aprendizagem foi bastante mais lento, quer por efeitos da guerra civil que se lhe seguiu, quer pelo facto de o primeiro Liberalismo ser profundamente elitista. Em 1867, de 757.000 crianças dos 7 aos 15 anos registadas no nosso país, havia ainda cerca de 600.000 que nunca tinham ido a escola[3].
As coisas viriam a melhorar significativamente a partir da década de 1850, mas essa melhoria notou-se especialmente em cidades como Lisboa, Porto e Coimbra, onde surgiu em força uma classe de letrados. Ao contrário, no interior do país, essencialmente rural, estava já bem avançado o último quartel do século XIX e era ainda muito reduzido o número de pessoas que sabiam ler e escrever. Em 1878, Lisboa apresentava uma taxa de analfabetismo que ia dos 70 e aos 75 por cento, enquanto no distrito de Braga essa taxa andava pelos 85%[4].
A Póvoa de Lanhoso foi, até meados do último quartel do século XIX, um desses concelhos rurais, uma dessas terras perdidas num Portugal agreste onde tirando as cidades capitais de distrito, a esmagadora maioria da população se dedicava à agricultura e vivia fechada à aprendizagem das letras mais básicas.
Na sua tese de mestrado sobre o papel do administrador do concelho José Joaquim Ferreira de Melo e Andrade na Revolução da Maria da Fonte[5], Paulo Alexandre Ribeiro Freitas dá a público um conjunto de tabelas que nos permitem conhecer um pouco da realidade povoense até agora inédita: em 1836, entre uma população de 1.177 indivíduos residentes na freguesia de Fonte Arcada, a mais desenvolvida das que compunham o concelho, apenas setenta e cinco eram eleitores. Destes, quatro eram advogados, cinco dedicavam-se a ofícios vários, havia um cirurgião e um juiz, três escrivães e outros tantos militares e padres, dois eram professores, dois vendeiros ou negociantes, um pensereiro, sendo que o maior número dos recenseados eram proprietários, onze no total, e lavradores, em número de trinta e nove.
Na mesma data (1836) e segundo o referido autor, para um total de 8.156 habitantes no concelho, à época composto por apenas catorze freguesias[6], existiam somente 255 eleitores. Menos de uma década volvida, para o mesmo número de freguesias, os eleitores recenseados haviam subido para 356, ainda assim uma percentagem reduzida para o todo concelhio.
Convém dizer-se que, pelo articulado do Código Administrativo de 1842, eleitores não eram apenas, como viria a acontecer anos mais tarde, os que sabiam ler e escrever. Eram antes os que pagavam determinado montante em impostos[7]. Mas não andaremos longe da verdade se dissermos que a diferença entre o número dos cidadãos que pagavam impostos e podiam por isso recensear-se, tornando-se eleitores, e o dos que sabiam ler e escrever, não era grande.

Escolas do século XIX

Não sabemos ao certo quando a Póvoa de Lanhoso terá tido a sua primeira escola. É certo, contudo, que já por aqui havia “homens letrados” nos séculos iniciais da fundação de Portugal, dada a existência de um cenóbio benedito em Fontarcada, que possuía “escritório”. Quer isto dizer que, sendo a Ordem de São Bento uma ordem também virada para a escrita e para a arte da cópia, haveria no mosteiro uma escola não apenas para ensino dos noviços mas, também, para o desenvolvimento das capacidades intelectuais e artísticas daqueles que, ali entrados, fossem destinados ao trabalho de copistas.
Quanto a escolas destinadas à população em geral, e dado não existirem arquivos municipais ou particulares que permitam um maior conhecimento sobre a matéria, interessará referir que, no seu romance “O Demónio do Ouro”, Camilo Castelo Branco referia-se a uma escola de primeira-letras na vila da Póvoa de Lanhoso onde, em 1750, ensinava um mestre chamado João Veríssimo Vieira[8]. É certo que romance não é história e que a informação deixada pelo escritor de Seide não pode ser tida como verdade científica, mas também não podemos negar fundamento à referência até pelo facto de Camilo Castelo Branco se documentar muito bem para a redação dos seus trabalhos. Certo é que em 1837 já a Câmara Municipal assegurava pagamento de “gratificação” a um mestre de primeiras letras que lecionava na escola da Vila da Póvoa, fazendo-o também, em 1839, ao mestre João Baptista Lopes Malheiro, que ensinava em Fontarcada. Em 1842, estes deviam ser os únicos professores existentes na vila, aparecendo recenseados como moradores na freguesia de Fontarcada que, à época, vinha até à margem Sul do ribeiro Pontido[9].

Assinalados, os dois edifícios rés-do-chão das escolas do Largo do Amparo, hoje avenida da República

Não se sabe se a escola da Vila se situaria já, nessa altura, na parte pertencente a Lanhoso ou seja, a norte do ribeiro Pontido. Mas já ali estava implantada no último quartel do século XIX - quando o recém-criado semanário Maria da Fonte (1886) publicava uma curta nota sobre uma peça teatral que se realizou na “escola da vila” - situada um pouco acima da igreja do Amparo.
Anos depois, juntou-se a esse edifício um outro, custeado pela herança do Conde de Ferreira, passando então a vila a ter uma escola em dois edifícios distintos. Enquanto existiu apenas um edifício, este era considerado misto, embora como se disse já fossem quase exclusivamente composta por rapazes a população escolar. Com a construção do novo edifício, instalou-se nele a escola para o sexo masculino, ficando o antigo edifício para o sexo feminino[10].
O final da centúria de Novecentos foi tempo de especial interesse pela instrução no nosso país, altura em que, um pouco por todo o lado, o ensino básico se disseminou.
Importante papel no alargamento substancial da rede de ensino foi o dos “brasileiros de torna viagem” os quais, tendo partido para o Brasil algumas décadas antes com pouca instrução, e sabendo o que, mesmo esse parco conhecimento, lhes valeu para trilharem um caminho de sucesso, deram início a um significativo investimento, quer na construção de edifícios quer na atribuição de prémios e no pagamento de materiais escolares.

O primeiro quartel do século XX

Com o dealbar do século XX, as escolas começaram a ser uma realidade em quase todas as freguesias do concelho da Póvoa de Lanhoso. Funcionavam em geral em casas alugadas a particulares, assumindo a Câmara, conforme a Lei consignava, quer parte do pagamento dos salários aos professores, quer a renda integral da casa onde estes residiam. O pagamento das rendas das casas de residência dos professores era uma forma de cativar para o meio rural estes mestres, cujo número não abundava. Os valores dispensados pelas Câmaras com os referidos compromissos eram, aliás, muitíssimo elevados, constituindo-se como uma parte de leão dos orçamentos dos municípios. Havia, fruto das dificuldades em encontrar casas nas freguesias com as condições mínimas indispensáveis à instalação quer das salas de aulas quer da residência dos mestres-escola, indivíduos de posses que construíam de novo ou reformavam antigos edifícios de sua propriedade, de forma a tirarem deles bom rendimento. Mas não é menos verdade que este início de século havia já muitos beneméritos dispostos a construir de raiz e a oferecer edifícios escolares propositadamente desenhados para esse fim, como adiante se verá.
Na vila existia já desde finais do século XIX, como se disse, uma escola com dois edifícios próprios mas, nas restantes freguesias, eram constantes as mudanças, com os senhorios a pedir sucessivos aumentos de rendas à Câmara. Também se torna evidente, da leitura das atas do município, que esta podia regatear o valor e a disponibilidade para obras e outros benefícios mas que, em geral, cumpria religiosamente com o investimento nas escolas e no apoio aos professores.

Números das escolas em 1907


Talvez por isso, em 1907 havia escolas do ensino primário estabelecidas em vinte e três das 28 freguesias do concelho (a freguesia da Póvoa de Lanhoso seria criada apenas em 1930), e, de uma população concelhia de 16.928 indivíduos sabiam ler 2.596 cidadãos do sexo masculino e 1.043 do sexo feminino[11].
Mas eram, mesmo assim, apesar da oferta de escola, muitas as crianças que se furtavam a ir às aulas, uns porque não se sentiam para tal incentivados e outros porque eram mesmo impedidos pelos pais de o fazer, dado que estavam, desde pequenos, talhados pelas famílias para engrossar o número daqueles que, analfabetos, se dedicavam a uma agricultura de subsistência. Ficar em casa, consumir bebidas alcoólicas como “mata-bicho” e de seguida ir, descalços ou mal calçados, mesmo nos meses de profundo inverno, levar as vacas ao pasto ou ajudar a mugi-las e distribuir o leite pelos fregueses, era mais comum nesse tempo, e continuaria a sê-lo nas décadas seguintes, que ir à escola. Na primeira monografia histórica da Póvoa de Lanhoso intitulada “No Coração do Minho” e publicada em 1907 por José da Paixão Bastos, um dos maiores nomes de sempre da imprensa povoense[12], podia ler-se: “Este concelho, composto por 28 freguesias, é servido por 2 escolas mistas, 6 femininas e 15 masculinas, ou seja, [por] 23 escolas, [um] número suficiente (…). Mas as escolas são frequentadas por um limitado número de alunos (…). Entre nós, à escola vai quem quer e quando quer, pois o pai e a mãe, na sua feliz ignorância, dá como luxo liberdade ao seu descendente (…). Por sua vez os encarregados de educação não querem contrariar a inocência dos meninos, e assim vão crescendo envoltos nas trevas do analfabetismo, na criminosa ignorância[13].

Professor Freitas Guimarães e os “Prémios D. Elvira Câmara Lopes”
Na viragem do século XIX para o seguinte, destacou-se como professor, na vila da Póvoa, o mestre-escola Freitas Guimarães, a quem os jornais da época faziam significativas e honrosas referências. Sobre ele e em jeito de homenagem a todos os mestres de primeiras letras que já ensinaram na nossa terra, deixamos aqui uma breve nota biográfica.
Desconhecemos o local de nascimento do professor Joaquim José de Oliveira Freitas Guimarães. Já ensinava na escola da Vila nos meados do último quartel do século XIX, onde continuou a ministrar conhecimento até muito perto da sua morte, ocorrida no Hospital António Lopes em 16 de Julho de 1919. Foi sepultado no cemitério municipal da Póvoa de Lanhoso, tendo no seu funeral participado os bombeiros, um grande número de irmandades religiosas e os seus alunos, que doaram uma coroa de flores transportada ao cemitério pelo menino José Joaquim Teixeira Ribeiro[14].


O professor Freitas Guimarães


Foi casado com D. Teresa Maria de Oliveira Guimarães[15], de cuja união nasceram vários filhos: Esperança (também ela professora na escola da Vila a partir de 1902), Lídio, Álvaro, Elvira, Ester e Maria (presentes na terra) e outros ausentes no Brasil: Virgílio, Aníbal e José[16].
Aquando da sua morte, no obituário que então publicou, chamou-lhe o semanário Maria da Fonte “excelente homem, muito dedicado pelos seus e um incansável obreiro da instrução”[17]. Freitas Guimarães foi o primeiro de uma plêiade de grandes mestres que ensinaram nas escolas da vila da Póvoa e de entre os quais, para além do invocado e para referir apenas alguns dos já desaparecidos, merecem referência os professores Manuel Joaquim Fernandes, João Gomes e Mioseti Bastos.
Homem culto, dinâmico e atento e senhor de uma visão muito ampla para quem vivia numa pequena vila do interior, ao professor Freitas Guimarães se deve o estabelecimento de laços de amizade e comprometimento entre a escola e os grandes beneméritos D. Elvira e António Ferreira Lopes. Estes, a pedido do mestre-escola, instituíram, já nos finais do século XIX prémios para os melhores alunos das várias classes das escolas da vila, consubstanciados em entregas em dinheiro e em material escolar e livros aos que obtivessem maior aproveitamento e apresentassem maior higiene pessoal[18]. Os prémios foram entregues anualmente pelo casal até à morte de D. Elvira, em 1910, sendo que, quando se encontravam na vila, iam assistir pessoalmente à festa da entrega.


António e D. Elvira Câmara Lopes, os maiores beneméritos da instrução na Póvoa de Lanhoso

No seu testamento, feito em 1927, imbuído de um espírito solidário também para com os alunos das escolas da sua terra natal, decidiu legar um conjunto de título da dívida pública para, com o rendimento anual destes, continuarem a ser dados aos melhores alunos prémios anuais. Por vontade expressa de António Ferreira Lopes, as entregas anuais denominavam-se “Prémios D. Elvira Câmara Lopes”, ficando escrito no testamento querer com eles o benemérito homenagear a memória da sua “nunca esquecida esposa”.
Em 1937, ou seja, dez anos depois da morte do benemérito instituidor, entregava o seu testamenteiro e sobrinho Arlindo António Lopes à câmara a quantia de 9.567$70, “proveniente da liquidação de juros vencidos das inscrições adquiridas em 1930 para a respetiva herança até 31 de Dezembro de 1933, representativas do legado instituído pelo benemérito para compra de livros e concessão de prémios às crianças que frequentam as escolas da vila”. Na mesma ocasião, foi ainda entregue o valor em dinheiro de mais 8.100$00 proveniente dos juros do mesmo período (31 de Dezembro de 1933) até ao final do primeiro trimestre de 1937. Para além disso, foi entregue um certificado de renda perpétua nº 2.067, que foi entregue ao Tesoureiro da camara para ser guardado em cofre”[19]. Convirá acrescentar que o dinheiro entrado nos cofres do município (17.667$70) resultante dos juros de menos de dez anos seria suficiente para comprar uma casa média no centro da vila[20].
Em 1938, a câmara, fiel depositária dos títulos e responsável pela entrega da verba destinada aos prémios, aprovava em reunião ordinária “pagar através dos diretores das escolas do ensino primário, sexo masculino e feminino, desta vila, aos alunos pobres que em casa uma das mesmas escolas mais se distinguiram na higiene e aproveitamento nos exames, os prémios D. Elvira Lopes, relativos a 1937”. Os prémios tinham importâncias anuais de 50$00 e 30$00, totalizando, para casa escola (masculina e feminina), 80$00, tudo nos termos das disposições testamentárias de António Ferreira Lopes[21].

A construção da Escola António Lopes

A velha escola da avenida da República manteve-se em funcionamento até aos finais da década de 1930. Não tinha já as melhores condições para albergar os alunos que ali se deslocavam diariamente em busca de saberes mas, com sucessivos pequenos investimentos em obras ali feitos pela câmara municipal, foi resistindo ao período de miséria que Portugal viveu quando a Europa se envolveu numa Primeira Grande Guerra que a todos expôs às mais sérias dificuldades. E assim se foi mantendo no pós-guerra acompanhando, posteriormente, o definhar da I República, a chegada da Ditadura Militar e o nascimento do Estado Novo.
Havia contudo, desde anos antes, uma luz ao fundo do túnel para resolver o problema da substituição das antigas escolas: ao falecer, em dezembro de 1927, o grande benemérito povoense António Ferreira Lopes legou, entre muitos outros benefícios concedidos à sua terra natal, 200 contos à câmara para que esta pudesse construir, na vila, um novo edifício escolar, destinado às crianças de ambos os sexos.
Porém, problemas surgidos com a partilha dos seus bens e, nomeadamente, com a forma como os legados deviam ser pagos (pois, entretanto, com o crash da bolsa de 1929 tinha surgido uma grande desvalorização da moeda, discutindo-se em tribunal se as somas expressas no testamento deviam ser pagas ao valor da época do falecimento do benemérito ou ao do da conclusão do processo), atrasou a entrega à câmara municipal das verbas atribuída e, consequentemente, a construção do edifício escolar.
No seu testamento, António Lopes deixou outras verbas, para além dos 200 contos destinados à construção da nova escola. Entre estas, encontrava-se uma de três centenas de contos, com a finalidade de ser edificado um novo edifício dos Paços do Concelho. A certeza de ter em mãos um verdadeiro tesouro havia levado já anteriores executivos municipais a projetar a construção dos dois prédios (Paços do Concelho e escola), mas os referidos atrasos na conclusão do processo judicial levou a que as obras fossem consecutivamente adiadas.
Em 1938, com o problema das partilhas em fase de conclusão, a câmara decidiu avançar com a construção dos novos Paços do Concelho. Chegou este edifício a estar pensado para o largo António Lopes e numa outra fase para a Casa da Botica, mas, aproximando-se a data da construção, foi escolhido implantá-lo na avenida da República. No terreno existiam várias construções, entre as quais os dois edifícios da escola primária atrás referidos.
Foi, então, decidido avançar, em paralelo, com a construção dos Paços do Concelho e com a de uma nova escola na vila. O projeto da nova escola foi encomendado (tal como o dos Paços do Concelho) ao arquiteto Rogério de Azevedo, que o apresentou ao executivo do município em outubro de 1937[22]. Levado ao conhecimento do Diretor-geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, o projeto seria de imediato aprovado.
Na mesma reunião camarária em que o projeto foi analisado, foi dito pelo presidente padre José António Dias que, tendo a camara de construir uma nova escola em virtude do legado de António Lopes, no desejo não só de cumprir a vontade do benemérito mas de a mesma ser útil à terra, ampliando e completando a finalidade das escolas, procurou ele, presidente, junto das instancias superiores em Lisboa ver se conseguia a construção da escola com cantina. E que lhe pareceu que o seu pedido seria conseguido se fossem oferecidos ao estado 200 contos “para fundo e sustentação” da mesma escola-cantina. Os vereadores aprovaram esta ideia do presidente, transformada em proposta, pelo que a câmara se apressou a oficiar à direção dos edifícios e monumentos nacionais a manifestar a sua disposição de entregar ao Estado os duzentos contos se o Estado custeasse integralmente a construção da escola cantina[23].
O assunto teve, em Lisboa, rápida análise e, em 17 de Janeiro de 1938 era recebido na câmara um ofício do arquiteto-chefe da 2ª secção da Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais a recomendar a aquisição urgente do terreno para a edificação do novo edifício da escola-cantina, visto que se achava já aprovado superiormente, e devidamente dotado com 150.000$00, a construção do mesmo edifício.
O presidente foi encarregado de proceder à expropriação amigável dos terrenos (que pertenciam à família Lisboa e se situavam no largo de António Lopes), sendo-lhe conferidos todos os poderes, incluindo os de representar o município em juízo[24].
A construção da escola foi adjudicada em Maio de 1938[25], sendo a primeira pedra lançada no dia 5 de setembro do mesmo ano[26], em sinal de reconhecimento ao grande benemérito pois, nesse dia, completavam-se vinte e um anos da inauguração do hospital por António Lopes oferecido à Póvoa de Lanhoso.

A escola António Lopes, em 1940
 

As obras do edifício escolar decorreram a bom ritmo, vindo o edifício a ser inaugurado em setembro de 1940, menos de dois anos e meio depois de iniciado. Na sua ata de 30 de Setembro do mesmo ano, expressava o presidente da câmara aos seus colegas vereadores: “Está quase concluído o edifício da Escola-Cantina, faltando apenas algumas pequenas obras de acabamento, estando, porém, em esplêndidas condições de nele se poder ministrar o ensino. Propõe por isso [o presidente] que seja solicitada às instâncias superiores autorização para que no próximo ano letivo, a iniciar-se dentro de dias, sejam já ali ministradas as aulas, transferindo-se para ali todo o mobiliário e material didático existente na antiga escola”[27]. Obtida aprovação do diretor do distrito escolar, as aulas começaram na nova escola, tendo sido inaugurada esta no início de outubro do mesmo ano[28].
A pequena escola da avenida da República, que se dividia por dois edifícios, ambos pequenos, cedia agora vez a uma escola enorme, moderna, onde o granito, a madeira e o barro, matérias-primas oriundas da região, marcavam imponente presença. Com seis amplas e bem iluminadas salas de aula, com “recreios” vedados e parcialmente cobertos, para rapazes e para meninas, a escola era um dos melhores e mais modernos edifícios da terra. Possuía retretes nos recreios masculino e feminino, para seis crianças de cada vez em cada um, ligadas a uma fossa séptica, o que era sinal da modernidade dos tempos. A escola estava ainda dotada de sala de direção, de áreas destinadas a arrecadações, de uma residência para um contínuo e de uma enorme cantina, acrescentada ao projeto inicial por intervenção do presidente da câmara padre José Dias, que a viu batizada com o seu nome. A escola, em homenagem àquele que a idealizou e pagou, teve desde o início o nome de Escola António Lopes.
Foi nesta escola que o ensino primário se desenvolveu e solidificou na vila da Póvoa, não só pelas boas condições que o edifício proporcionava como pelo facto de, paulatinamente, a frequência ir aumentando. Havia cada vez mais a noção de que a ler, escrever e contar era ferramenta sem a qual mais ninguém conseguiria singrar na vida.
Ainda em 1941, aos professores Manuel Fernandes e João Gomes, juntava-se por nomeação definitiva a professora Miosete da Rocha Braga Bastos[29], que na escola já desempenhava funções letivas interinamente.
Os velhos edifícios da avenida da República, esvaziados das funções para que foram construídos, viriam a ser vendidos, em dezembro de 1941 à paróquia de Nossa Senhora do Amparo por 35.000$00, para li se instalar o pároco, já que a anterior residência paroquial fora demolida para, no seu espaço, como no de outras propriedades anteriormente ali existentes, serem edificados os Paços do Concelho[30].
A luz elétrica só chegou à escola em meados da década de 1950, no seguimento de uma petição levada à câmara municipal pelo professor Reinaldo Faria, que a solicitava pelo menos para uma sala, com vista a nesse cómodo poder ser realizado um “curso noturno de adultos”[31].
A nova escola viria a servir gerações de povoenses. Ali ensinaram dezenas e dezenas de mestres e mestras; ali aprenderam as “primeiras letras” (e na maioria dos casos, únicas), milhares e milhares de crianças. Nas suas salas se fizeram, da melhor matéria humana, primeiros caminhos de futuros homens e mulheres e, nos recreios da escola, onde árvores e sebes marcavam o espaço com as suas belezas naturais, se praticaram os jogos tradicionais que eram, à época, a “educação física” oficial de grande parte dos educandos. O próprio Sport Club Maria da Fonte, a maior agremiação desportiva da terra, colheu também, entre aqueles que envergaram a sua camisola, centenas de jovens cujo primeiro contato com a bola ocorreu precisamente na terra batida dos recreios daquele estabelecimento de ensino.

A escola nova da era do betão e do alumínio

Nos finais da primeira década do século XXI a Escola António Lopes encontrava-se em mau estado de conservação, bastante ultrapassada na sua conceção e impossibilitada, se não fossem feitas grandes obras, de se adaptar às novas exigências pedagógicas. Havíamos entrado na era dos computadores e o velho desenho já não comportava espaço para as novas tecnologias. Esse era um problema difícil de resolver, mas outros havia, como o natural envelhecimento causado por muitas dezenas de verões e invernos que se refletiam no estado dos telhados, das paredes e das madeiras. Havia, pois, necessidade de tomar decisões: recuperar a velha Escola António Lopes ou construir outra de raiz?
É sobre isso que falaremos na segunda parte deste artigo, a publicar em breve.

A nova escola da Vila, inaugurada na primeira década do século XX
 
(A segunda parte deste artigo será publicada em breve)


[1] Investigador do CTCEM/Universidade do Minho e bolseiro da FCT.
[2] Chartier, Roger – As Práticas da Escrita, in “História da Vida Privada: Do Renascimento ao Século das Luzes”, Vol. 3, Lisboa, Edições Afrontamento, 1990, pp.113-164.
[3] ALVES, Luís Alberto Marques – O Ensino, in “Nova História de Portugal” (Dir. Joel Serrão e A. H. de Oliveira Marques), Vol. X (Portugal e a Regeneração), Lisboa, Editorial Presença, 2004, p. 311.
[4] ALVES, Luís Alberto Marques – o. c., p. 313.
[5] FREITAS, Paulo Alexandre Ribeiro – O Liberalismo na Póvoa de Lanhoso. O Administrador do Concelho na Revolução da Maria da Fonte, tese de mestrado apresentada à Universidade do Minho, 2010, p. 50.
[6] O concelho da Póvoa de Lanhoso é hoje composto por 29 freguesias.
[7] Código Administrativo, Lisboa, Imprensa Nacional, 1842, pp. 8-10.
[8] Castelo Branco, Camilo, O Demónio do Ouro (Vol. I), Lisboa, Parceria A. M. Pereira, Lda, 1970 (6ª ed.), p. 5.
[9] Cf. Freitas, Paulo Alexandre Ribeiro, O Liberalismo na Póvoa de Lanhoso. O Administrador do Concelho na Revolução da Maria da Fonte, tese de mestrado defendida na Universidade do Minho em Outubro de 2010, ed. Policopiada, 2010, pp. 55-57.
[10] Santos, Manuel Magalhães dos, Monografia da Póvoa de Lanhoso. Nossa Senhora do Amparo, Póvoa de Lanhoso, ed. do Autor, 1990, p. 439.
[11] Cf. Bastos, Paixão, No Coração do Minho: A Póvoa de Lanhoso Histórica e Ilustrada, Braga, Tipografia Henriquina a Vapor, 1907, pp.95-97.
[12] Cf. Coelho, José Abílio, Paixão Bastos (1870-1948): vida e obra de um escritor de província, Póvoa de Lanhoso, Edições Terras de Lanhoso, 2007.
[13] BASTOS, Paixão – No Coração do Minho: A Póvoa de Lanhoso Histórica e Ilustrada, Braga, Tipografia Henriquina a Valor, 1907, p. 98.
[14] José Joaquim Teixeira Ribeiro foi um dos seus alunos mais brilhantes. Viria a licenciar-se em Direito, por Coimbra, universidade pela qual se doutorou em 1934, na qual foi professor e reitor. Após a revolução de 25 de Abril de 1974 chegou o ocupar o cargo de vice-primeiro ministro de Portugal.
[15] Cf. Jornal Maria da Fonte, nº 995, de 23 de Agosto de 1914, p. 2
[16] Cf. Jornal Maria da Fonte, de 27 de Julho de 1919, p. 2.
[17] Maria da Fonte, de 20 de Julho de 1919, p. 2.
[18] Cf. Arquivo Municipal da Póvoa de Lanhoso (doravante ACMPL), Actas da câmara, livro nº 17 (de Agosto de 1906 a Setembro de 1908), fl. 25. Em Outubro de 1907, era o próprio a escrever à câmara municipal, fazendo o elogio de António Ferreira Lopes e de sua esposa D. Elvira, participando que os mesmos, além de distribuírem às crianças pobres que frequentavam a escola livros, papel e outros objetos, distribuíram também por ocasião da festa escolar do ano passado prémios na importância de 35:000 reis e na deste ano 45:000 reis
[19] ACMPL, Actas da câmara, Livro nº 31 (29 de Março de 1937 a 18 de Julho de 1938), fls. 31v-32.
[20] Em 1932, a Casa da Botica, uma das maiores que ali existiam, com o seu grande foi adquirida pela câmara pela quantia de 50.000$00.
[21] ACMPL, Actas da câmara, Livro nº 31 (29 de Março de 1937 a 18 de Julho de 1938), fls. 31v-32.
[22] ACMPL, Actas da câmara, Livro nº 31 (29 de Março de 1937 a 18 de Julho de 1938), fl. 86.
[23] ACMPL, Actas da câmara, Livro nº 31 (29 de Março de 1937 a 18 de Julho de 1938), fls. 88-88v.
[24] ACMPL, Actas da câmara, Livro nº 31 (29 de Março de 1937 a 18 de Julho de 1938), fls. 127-127v
[25] ACMPL, Actas da câmara, Livro nº 31 (29 de Março de 1937 a 18 de Julho de 1938), fls. 177.
[26] AMPL, Livro de Actas de camara nº 32 (18 Julho 1938 a 13 novembro 1939), fls. 20v.-21v.

[27] ACMPL, Actas da câmara, Livro nº 33 (de 13 de Novembro de 1939 a 24 de Novembro de 1941), fls. 107-107v.
[28] ACMPL, Actas da câmara, Livro nº 33 (de 13 de Novembro de 1939 a 24 de Novembro de 1941), fls. 110v.
[29] A professora Miosete era viúva de um sobrinho neto de António Ferreira Lopes, parentesco que foi invocado pela câmara para pedir a sua nomeação definitiva ao ministério da tutela.
[30] ACMPL, Actas da camara, Livro nº 34 (8 de dezembro de 1941 a 20 de Novembro de 1944), fl. 5v-7.
[31] ACMPL, Actas da câmara, Livro nº 39 (1 de Outubro de 1951 a 4 de Maio de 1953), fl. 192.