quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

D. Elvira de Pontes Câmara Lopes (1856-1910):No centenário da sua morte


José Abílio Coelho

D. Elvira de Pontes Câmara Lopes
 
Elvira, filha legítima de Manoel de Pontes Câmara e de sua esposa D. Guilhermina de Mattos Vieira, ele natural da Ilha da Madeira, ela do Rio de Janeiro, nasceu na Rua 23 de Julho[1], paróquia de Santo Ildefonso, da cidade do Porto, no 5 de Setembro de 1856, em cuja igreja matriz viria a ser baptizada a 4 de Outubro do mesmo ano. Era neta paterna dos madeirenses Francisco de Pontes e D. Maria Narciza da Câmara, e materna de D. Emília Carlota Domingues, brasileira do Rio de Janeiro, e de avô incógnito, tendo sido seus padrinhos António Serafim Leite Basto e sua mulher D. Maria da Vitória Magalhães Leite Basto[2], proprietários da casa onde a mãe da recém-nascida estava hospedada quando a menina nasceu, enquanto o marido se encontrava ausente, na cidade do Paris[3].
O nascimento de Elvira de Pontes Câmara em Portugal ocorreu acidentalmente, no decurso de uma viagem que o casal empreendera à Europa, onde seu pai, emigrante português no Império do Brasil e negociante de largo trato, tinha grandes interesses comerciais. Mas se a vida tem caminhos pré-definidos, se nada acontece por acaso, este nascimento acidental em Portugal viria a mostrar-se providencial, dada a profunda ligação que D. Elvira viria a ter ao nosso país.
Pouco tempo após o nascimento, a menina regressou com os pais ao Brasil onde, na cidade do Rio de Janeiro, cresceu e brincou entre um conjunto de irmãos — várias raparigas e apenas um rapaz, Manoel de seu nome, o mais novo da prole —, sendo educada nos melhores colégios. Ali se fez mulher, no convívio com a melhor sociedade «carioca» da época.
Até que, com pouco mais de 15 anos de idade, conheceu na residência de seu pai o português António Ferreira Lopes, natural da Póvoa de Lanhoso, com quem viria a casar-se em Janeiro de 1875[4]. Ela tinha 18 anos de idade, ele 29.
Em 1888, muito rica e sem filhos, regressou com o marido a Portugal. Definitivamente. Instalou-se o casal num belíssimo palacete na parte mais nobre da cidade de Lisboa, a Avenida da Liberdade, onde habitava grande parte do ano, e, pelo menos durante três meses, entre finais de Agosto e finais de Outubro ou inícios de Novembro, vinham ambos instalar-se na Póvoa de Lanhoso, no Palacete das Casas Novas que mandaram edificar após o regresso à pátria de Camões.
Com graves problemas de saúde, especialmente nos últimos anos da sua vida, D. Elvira de Pontes Câmara Lopes havia de morrer jovem, aos 53 anos de idade, na noite fria de 11 de Fevereiro de 1910 — poucos meses antes da implantação da República em Portugal.
A serena morte desta distintíssima senhora, que lia e falava fluentemente francês e tocava piano, que estudara nos melhores colégios da capital do já independente Império do Brasil e viajara vezes sem conta por toda a Europa, ocorreu em Lisboa, depois de quase seis anos padecendo de uma doença degenerativa que a obrigava a deslocar-se numa cadeira de rodas.
A notícia do seu falecimento chegou à Póvoa de Lanhoso via telégrafo manhã cedo do dia seguinte à sua morte. A terra, que a venerava e que nos elogios fúnebres lhe chamou «mãe» e «santa», vestiu de luto, e nos meses seguintes as missas pela sua alma encheram com as elites locais e o povo mais humilde as igrejas de todo o concelho.
Mas, quem foi, na realidade, para os povoenses que a adoravam, que guardaram até hoje o seu nome na memória e deram o seu nome a uma rua da vila, Dona Elvira Câmara Lopes? Foi a protectora dos pobres, a consoladora dos aflitos, o amparo das mães solteiras, o coração aberto e a mão gentil que, na sua residência local, recebia para lhes atenuar a fome e o frio crianças e mulheres que viviam na mais profunda miséria. Assim a descrevem, sem excepção, os jornais que à época se publicavam na Póvoa de Lanhoso. Assim a vemos nós, ainda hoje, num conjunto de fotografias captadas por visitas da casa que cá habitou, quando os portões do terreiro do Palacete das Casa Novas se abriam de par e par e por ali adentro acediam à protecção daquela senhora franzina e de olhos vivos dezenas e dezenas de crianças e mulheres, esfarrapadas e descalças. A todos consolava, a todos estendia a mão fraterna, a todos distribuía alimento e agasalho. Por isso, tantos lhe chamaram «mãe», apesar da Providência lhe não ter dado filhos naturais; por isso, muitos outros a apelidaram de «santa», embora o coração magnânimo do marido a não obrigasse a esconder no avental o pão para os pobres por milagre transformado em rosas.
Rica por nascimento, solidária por formação e influência familiar, bondosa por natureza, D. Elvira de Pontes Câmara Lopes foi em vida um exemplo de bem-fazer, não para com os da sua igualha, mas para com todos aqueles a quem a Providência deserdara de bens materiais e de saúde, sempre nesse doar constante apoiada pelo marido, que a ela se referiu tantas vezes como «a minha amada esposa».
O resto desta história de amor, desta união que durou trinta e cinco anos — a vida do casal no Rio de janeiro, a viagem de núpcias a Portugal alguns anos depois, a morte por afogamento, num naufrágio, de Manoel de Pontes Câmara quando, já viúvo, de Lisboa se dirigia para a Inglaterra, o regresso definitivo a Portugal, a instalação em Lisboa e os Verões na Póvoa de Lanhoso, a fundação dos Bombeiros e a construção do Theatro Club, o desprezo pela política e pelos cargos, as viagens familiares pela Europa, a porta sempre aberta para receber amigos, ricos ou pobres, titulares ou plebeus, as obras grandiosas que fizeram na nossa terra, o papel charneira no maior desenvolvimento que a Póvoa conheceu ao longo de toda a sua história — será desenvolvida, noutros suportes, em data futura.
Por agora, ao cumprirem-se 100 anos sobre o seu desaparecimento do mundo dos vivos, importa destacar o papel de Dona Elvira de Pontes Câmara Lopes como mulher solidária, como protectora dos pobres e dos aflitos, como «mãe» carinhosa dos filhos alheios, como a dona de um coração bondoso por detrás da face do marido que empreendeu todas as obras. E importa dizer ainda que, apesar do Hospital António Lopes, cujas obras se iniciaram em 1912 e concluíram em 1917, ter sido edificado já depois da morte desta nobre Senhora a quem a Póvoa relembra com saudade, não deixou de contar também com o seu contributo, fosse pelas inúmeras vezes que em vida pediu ao marido construísse na nossa terra «um hospital para os pobres» (especialmente por, quando cá se encontrava, em férias, assistir, aflita, quase diariamente, ao sofrimento de doentes e acidentados que em carros de bois eram transportados para o hospital de Braga, numa deslocação dolorosa que demorava várias horas), fosse pela riqueza que António Lopes dela recebeu para juntar à sua, após a abertura do testamento que o tornava seu universal herdeiro, já que haviam casado após firmarem um acordo antenupcial através do qual cada um deles manteria, em vida, a posse dos próprios bens e tornaria o sobrevivo herdeiro universal daquele que primeiro partisse.
D. Elvira de Pontes Câmara Lopes faleceu em Lisboa pelas dez horas da noite do dia 11 de Fevereiro de 1910 — uma sexta-feira chuvosa e fria em que, na capital do país, se trabalhava já com vigor a implantação da República que chegaria menos de oito meses volvidos. Não obstante um século passado sobre o seu desaparecimento, tempo longo em que tantas e tão profundas mudanças se registaram no Planeta, umas vezes para melhor, outras para pior, a verdade é que «os longos dias que têm cem anos» não foram capazes de apagar o nome de Elvira de Pontes Câmara Lopes da história e, muito especialmente, do coração dos povoenses.
O que só um enorme bem-querer é capaz de conseguir.


[1] Hoje Rua de Santo Ildefonso. Cf http://ruasdoporto.blogspot.com/2008/08/procisso-santo-antnio-que-se-fez-no.html [consulta em 11/07/2010]
[2] Arquivo Distrital do Porto – Livro de Assentos Baptismais da paróquia de Stº Ildefonso (ano de 1856, assento nº. 250).
[3] Numa memória de Pontes Câmara, em nossa posse, este refere expressamente ser D. Elvira «a única filha a cujo nascimento não assisti». Embora o não o diga claramente, Pontes Câmara estaria envolvido com uma senhora francesa (e note-se que são constantes, ao longo da sua vida as viagens à Europa e especialmente a França), pois indica que, a 13 de Novembro desse ano de 1856, nasceu em Paris, pelas «seis horas e quatro minutos da tarde, outra filha minha». Esta criança virá a ser também baptizada na igreja de Santo Ildefonso, na cidade do Porto, aos 28 dias do mês de Julho de 1859, com o nome de Emma Edouina Rita Emmuella, sendo padrinhos José Cardozo Pinto Montenegro e Dona Rita Acássia Lopes. A menina faleceu a 18 de Fevereiro de 1867.
[4] Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, livro de casamentos (nota AP 554), da freguesia de Santa Rita.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Os “Partidos Médicos” e os cuidados de saúde prestados aos doentes pobres nos municípios portugueses



José Abílio Coelho*


Os facultativos municipais "curavam" gratuitamente os doentes pobres dos municípios que lhes davam Partido


Ao mesmo tempo que com o avançar dos séculos as artes de curar foram crescendo no saber empírico ou científico dos seus praticantes, aumentava também o querer dos povos para terem ao seu alcance os frutos desses saberes[1].
Contudo, a história mostra-nos que apesar da evolução, também paulatinamente conseguida pela Medicina portuguesa, e que teve especial desenvolvimento a partir do segundo quartel do século XIX com a criação de Escolas Médico-cirúrgicas em Lisboa e Porto[2], a prestação de cuidados de saúde aos doentes que viviam fora dos grandes centros urbanos, ou dos concelhos onde não existia um hospital - e muitos eram esses municípios! - demorou séculos a tornar-se efetiva e consistente.
Fora dos hospitais, públicos ou, em boa parte, pertencentes às Misericórdias portuguesas[3], a assistência aos menos dotados de bens materiais era prestada pelas Câmaras Municipais, fosse pagando a amas-de-leite para criação dos expostos ou órfãos, fosse custeando tratamentos esporádicos em doentes de patologias perigosas que tivessem que ser internados em hospitais centrais, fosse, ainda, colocando à disposição de doentes pobres, clínicos que, através de um contrato que lhes garantia um vencimento anual, se obrigavam perante a câmara contratante a “curar” gratuitamente na área daquele município. Estes profissionais da saúde, umas vezes médicos, outras vezes cirurgiões, eram designados por “facultativos dos partidos das câmaras” ou, mais simplesmente, por “médios municipais”.
Importa sublinhar que não foram unicamente reservados a médicos os Partidos que existiram ao longo dos tempos: houve também Partidos para boticários, para parteiras, para dentistas ou, mais tardiamente, para veterinários[4].
Também não foram exclusivamente municipais os Partidos médicos. Freguesias de maior dimensão, hospitais particulares, hospícios, asilos, corporações de bombeiros e até irmandades religiosas implementaram-nos para os seus moradores ou utentes. Não obstante, pelo profícuo trabalho desenvolvido ao longo de vários séculos junto das populações mais necessitadas, foram os médicos municipais que acabaram por se impor como uma verdadeira instituição nacional ou, como lhes chamou Ricardo Jorge, um “exército de paz e altruísmo (…)”, uma “guarda nacional que custodia o penhor mais caro do povo: a vida e a saúde”[5].
Nesta breve comunicação interessa-nos analisar a evolução desta atividade do campo da saúde, que nasceu em tempos imemoriais e resistiu até ao pós-revolução de 1974, e que se constituiu, aos poucos, não apenas como única forma de os pobres de determinadas zonas do país terem direito a atendimento médico gratuito, mas também a de centenas de municípios do interior poderem dispor de um clínico residente.

Os Partidos Médicos
Antes de mais, importa dizer que Partido é um substantivo que outrora significou “ajuste”, “prémio”, “paga”, “serviço prestado a alguem”, como refere no seu dicionário Moraes Silva, autor que no mesmo verbete nos elucida assim sobre o tema que agora nos interessa: “Medico do partido” é um clínico “de contracto de alguma villa ou cidade, e ganha somma certa e não é pago por visitas de quem o chama”[6]. Outros dicionários de carácter geral, sendo mais pobres na abordagem ao significado do termo, encaminham-nos para a mesma conclusão: partido médico é o lugar destinado a um especialista clínico que presta serviço a um município ou instituição, recebendo um valor fixo mensal independentemente do volume dos atendimentos que tenha que prestar a quem dele necessita, dentro de determinados limites[7]. Em linguagem de hoje, creio que bem podíamos dizer que um médico de partido era um avençado.
Localizar no tempo o aparecimento em Portugal, como noutros países onde existiram, nomeadamente a Itália e a Espanha, desta figura tão querida das populações mais pobres é que já se não nos mostra tão fácil como fixar a designação.
Alguns historiadores referem que já as grandes cidades do Império Romano tinham ao serviço dos mais carenciados um médico pago pelos cofres públicos, designado por médico condotto, ou médico contratado, realidade que se desmoronou durante a fragmentação do Império para voltar a ser implantada na Toscana, em 1630[8], e mais tarde a toda a Itália unificada.


O Dr. Ricardo Jorge, um dos maiores vultos da medicina portuguesa dos século XIX-XX foi também médico do Partido Municipal do Porto antes de ser Director Geral da Saúde

Aqui ao lado, em Espanha a prestação médico-farmacêutico gratuita aos doentes carecidos foi imposta como obrigação municipal em 1854[9], sendo certo, porém, que “a assistência médica aos pobres e aos povoados pequenos pôde elevar-se em Espanha a um notavel grau de perfeição (…), mercê do filantrópico costume que desde tempo imemorial têm os nossos municípios de contratar facultativos”[10].
E em Portugal, quando surgiu a figura do médico de Partido municipal?
António Ribeiro Sanches (1699-1783), eminência médica europeia da centúria de Setecentos e ele próprio médico municipal em Benavente na verdura dos seus 24 anos de idade[11], afirmava nos seus Apontamentos para estabelecer um Tribunal e Colégio de Medicina, redigidos em meados do século XVIII, que “no tempo del Rei Dom Manuel [reinou entre 1495 e 1521] se fundaram as Misericórdias com Hospitais (…) e me parece que desde aquele tempo se estabeleceram os partidos das Câmaras…”[12]. Parece ter razão o “médico dos males d’amor” já que, embora sem lhe chamar Partido, O Venturoso ordenava, em 1518, por alvará dirigido ao seu capitão na cidade de Goa (Índia), haver por bem que “o fizico que tevermos nessa cidade com o noso soldo cure todos os doemtes que for requerido polo proveador e oficiaes da Misericordia; que a va visitar e curar asy mesmo todos os outros doemtes e pessoas que ouver nesa cidade que polos da Misericordia nam seja requerido; e a huus e a outros sem lhe levar por isso cousa alguma porque polo soldo que de nos haa em cada huu anno he obrigado de o asy fazer”[13]. De momento desconhecemos outras fontes anteriores àquela que acabamos de citar e da qual resulte tão clara a obrigação imposta pela Coroa a um físico a quem pagava soldo, para “visitar e curar”, sem cobrar qualquer outro valor, doentes pobres de uma área geográfica determinada.
A verdade é que a partir do século XVI a contratação de médicos municipais passou a ser uma preocupação de grande parte dos concelhos, especialmente daqueles que detinham maior poder económico, como aconteceu, por exemplo, no de Castelo Novo, que em 1585 dispunha já de um facultativo do Partido da câmara para “curar” os seus munícipes mais pobres[14]. A partir desta data, foram várias dezenas, ou mesmo centenas, os municípios que passaram a ter sob Partido o seu próprio médico, ou, em casos menos comuns, mais que um.
A contratação desses físicos ou cirurgiões, durante o Antigo Regime, obedecia a um conjunto de parâmetros: iniciava-se pela escolha, por parte da Câmara, de um partidista, obrigando-se a corporação, posteriormente, a colher o parecer da nobreza e do povo, reunidos em assembleia, sobre a nomeação e o ordenado a pagar. Aprovada a contratação pela assembleia, era seguidamente solicitado ao “governo de sua Majestade” a provisão do escolhido, o que a Coroa em geral autorizava, confirmando a escolha e o valor do vencimento, quase sempre suportado “pelo sobejo das cizas”.
Com o Liberalismo, as câmaras escolhiam e aprovavam o nome do partidista e o seu vencimento, solicitando depois, diretamente, a aprovação da Coroa.


Caderno de bolso de um facultativo dos inícios do século XX e uma página do mesmo livrinho

O vencimento pago a estes facultativos variava muito de município para município, sendo sempre estabelecido um valor anual. No concelho de Penela, por exemplo, o médico municipal vencia anualmente, em 1755, 100:000 réis[15], quando, mais de trinta anos depois, o de Miranda do Corvo ganhava apenas metade[16]. A situação de desequilíbrio nas dotações dos Partidos viria a manter-se até ao século XX, sendo mesmo um dos temas fortes discutidos no Congresso dos Médicos Municipais de 1911, onde o relator Aguiar Cardoso apontava, entre os 613 partidistas[17] então contratados em todo o país, diferenças nos vencimentos anuais que iam dos 100$00 aos 850$00[18].
Nos termos do contrato estabelecido com o município, o partidista, que se obrigava a residir na sede do Partido, não podia cobrar nem pela consulta, nem pela deslocação a casa dos doentes que apresentassem atestado de pobreza. Nas deslocações, muitas vezes feitas durante a noite e percorrendo distâncias que podiam atingir as duas dezenas de quilómetros, tinha de utilizar “besta sua”, sem nunca se negar a ir, fosse onde fosse chamado.
Para além do atendimento gratuito aos pobres era-lhes permitido exercer a atividade a “pulso livre” ou, na maioria dos casos, a “pulso cativo”. No “pulso livre”, o médico estava autorizado cobrar aos doentes que não apresentassem atestado de pobreza uma soma previamente combinada, enquanto na modalidade de “pulso cativo” cobrava apenas o valor constante de uma tabela, fixada pela própria câmara.

O início de uma “rede nacional” de médicos ao serviço dos pobres
A obrigatoriedade de as câmaras municipais, em Portugal, contratarem médicos para assistirem gratuitamente os menos favorecidos de meios, só irá ganhar força de lei no início do século XX. Até então, tinham-nos já a seu serviço dezenas ou mesmo centenas de concelhos, mas apenas aqueles cujos meios fossem suficientes para lhes pagar, resultando talvez daí a designação de “Facultativos” pela qual estes médicos eram referidos na documentação da época. Outra das causas para a não existência de partidistas em alguns concelhos do interior resultava, não da falta de meios para os custear, mas da escassez de clínicos de que Portugal sempre padeceu.
A falta de médicos só começaria a ser verdadeiramente combatida com a abertura, em 1825, das Escolas Régias de Cirurgia do Porto e de Lisboa, transformadas em 1836 em Escolas Médico-Cirúrgicas[19]. Os diplomados nestes dois novos estabelecimentos vieram engrossar significativamente o número dos que, até então, se formavam em Coimbra e o daqueles que tinham visto reconhecidas pelo Físico-Mor e pelo Cirurgião-Mor as suas competências, adquiridas pela prática junto de um médico credenciado ou no banco de um hospital[20]


Nomeação de um subdelegado de saúde nos finais do século XIX

A criação de um Conselho de Saúde Pública, em 3 de Janeiro de 1837, na sequência de algumas outras leis versando a administração sanitária e após a ocorrência de um surto epidémico em Portugal continental, constituiu-se como primeiro passo para o futuro alargamento da rede de prestação de cuidados de saúde a todo o país[21]. Contudo, o Código Administrativo publicado nesse mesmo ano (o primeiro código administrativo português), não fazia uma única referência aos Partidos Médicos municipais, o que só viria a ocorrer aquando da publicação do Código de 1842, que, mesmo assim, se limitava a autorizar as câmaras municipais a nomearem médicos, cirurgiões e boticários de partido, sem tornar essa nomeação obrigatória[22].
Em 1886 era dado a público novo Código Administrativo, contando este com a introdução de uma secção inteiramente dedicada às competências e obrigações dos facultativos de Partido. A partir desta data os médicos das câmaras passavam a ser admitidos através de concursos abertos, obrigando-se, para além do atendimento gratuito aos pobres, a “curar” sem direito a outra remuneração os expostos e as crianças desvalidas e abandonadas; a proceder gratuitamente à vacinação no concelho sem distinção de classes; a inspecionar as meretrizes, “na forma do respetivo regulamento”; a prestar conselho e a coadjuvar as autoridades administrativas e policiais quando o seu conhecimento científico se tornasse necessário.
Nas duas décadas finais da Monarquia Constitucional publicaram-se várias outras leis e regulamentos no sentido de melhorar o sistema de “saúde pública” no continente e ilhas adjacentes. Em 1899 foi criada a Direcção-Geral de Saúde Pública e Beneficência[23], dotada de um Regulamento Geral em 1901[24] através do qual se dizia, agora expressamente, que “as câmaras municipais (…) terão, pelo menos, um facultativo de partido (…)”. Os candidatos a Partido vago eram, a partir desta data, obrigados a possuir, para além da carta de médico, um curso de sanitaristas que funcionava no recém-criado Instituto Central de Higiene. Aos médicos municipais era ainda atribuída a responsabilidade de substituírem o subdelegado de saúde nos seus impedimentos, a verificarem os óbitos dos que tenham morrido sem assistência médica, a fiscalizar escolas, a verificar a aptidão física das amas de aleitação nomeadas pelas câmaras, bem como a inspecionar locais de venda de géneros alimentícios ou bebidas e a tomar lugar em exames, visitas e diligências sanitárias quando isso fosse necessário ou imposto pelos regulamentos.
Em 1911, já em pleno regime republicano, os médicos municipais reuniram-se pela primeira vez num congresso nacional, em Lisboa, do qual emanaram várias sugestões ao ministro do Interior, que tutelava a saúde. O ministro de então, António José de Almeida, ele próprio formado em medicina, atendeu à maior parte das reivindicações dos partidistas, fazendo publicar um decreto exclusivamente destinado à regulamentação dos partidos médicos e criando a Junta dos Partidos Municipais[25].


Consultório médico dos meados do século XX

No longo preâmbulo desse decreto, dividido em três pontos, surgia um interessante e bem elaborado “Relatório”, traçando a história dessa “tradicional e vivaz instituição portuguesa” que são os “partidos medico-municipais”. Apodando-a “de criação antiquíssima, que perde as suas origens na idade media, atestada nos velhos documentos dos archuivos onde se depara o rasto dos phisicos e cirurguões dos burgos, a instituição no decorrer dos tempos não fez senão diffundir-se e ampliar-se para benefício dos pobres”. O Relatório compara a missão dos facultativos dos municípios portugueses aos médicos condottos italianos e aos médicos titulares espanhóis, para, consequentemente, engrandecer esta estirpe de homens que, para além da assistência aos pobres, desempenhava a vigilância higiénica em todo o país.
O tempo e o espaço desta comunicação não nos permitem sintetizar aqui o verdadeiro hino aos partidistas dos municípios que este preâmbulo consubstancia. Mas não podemos deixar de referir que a sua publicação, mais do que introduzir alterações legais às suas atribuições e responsabilidades, que as há no seu articulado de trinta e quatro artigos, se constitui como uma homenagem a todos quantos, até àquela data e no futuro, assumiram ou viriam a assumir responsabilidades num Partido Médico Municipal.
Durante a vigência de quatro décadas de Estado Novo, as leis viriam a alterar várias das atribuições dos facultativos municipais[26] mas, no geral, a sua prestação manteve-se. E só em 1984, os partidistas municipais viriam a perder o estatuto de “médicos dos pobres” quando, através do Decreto-Lei 116/84, de 6 de Abril, os encargos até então a eles acometidos transitaram para os Centros de Saúde[27].

Conclusão
Em jeito de conclusão, e embora este nosso estudo sobre os Partidos Médicos municipais se encontre ainda numa fase embrionária, parece-nos sustentável afirmar-se:
a) Que os facultativos dos Partidos Municipais se constituíram, pelo menos desde o século XVII, como o principal alicerce da assistência aos doentes pobres nos concelhos;
b) Que apesar de dificuldades de toda a ordem que tiveram de enfrentar, sempre os municípios deram à saúde dos seus habitantes pobres a melhor atenção, tendo, desde meados do século XIX, fruto, quer da evolução sentida no campo da medicina, quer dos novos conceitos trazidos pelo Liberalismo, feito enormes esforços para estender a rede de atendimento destes facultativos a todo o país;
c) Que, com as necessárias adaptações e alterações legais, pode dizer-se que o Partidismo Médico Municipal foi uma das poucas instituições que, em Portugal, manteve o seu sucesso em regimes tão desiguais como o Absolutismo, a Monarquia Constitucional, a I República, a Ditadura Militar e o Estado Novo, dado que os partidos médicos resistiram até Abril de 1984.




** Bolseiro da FCT, Fundação para a Ciência e a Tecnologia; membro do CITCEM/Universidade do Minho.
** Trabalho apresentada nas III Jornadas de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, que tiveram lugar na Escola Superior de Tecnologias da Saúde de Lisboa (ESTeSL), nos dias 23 e 24 de Novembro de 2012.
[1] Para um conhecimento geral da evolução da medicina ao longo dos tempos, podem ler-se, entre outros, as seguintes obras e artigos: Mira, M. Ferreira de, História da Medicina Portuguesa, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1947; Macedo, Manuel Machado, História da Medicina Portuguesa no século XX, Lisboa, CTT, 2000; Pimenta, Tânia Salgado, “Terapeutas populares e instituições médicas na primeira metade do século XIX”, in Chalhoub, Sidney et all. (org.), Artes e Ofícios de Curar no Brasil: Capítulos de História Social, Campinas, Editora Unicamp, 2003, pp. 307-330; Abreu, Laurinda, “A organização e regulamentação das profissões médicas no Portugal Moderno: entre as orientações da Coroa e os interesses privados”, in Arte médica e imagem do corpo: de Hipócrates ao final do século XVIII, Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, 2010, pp. 97-122; Bynum, William, The History of Medicine, Oxford, Oxford University Presse, 2008.
[2] A falta de médicos no país só começaria a ser verdadeiramente combatida com a abertura, em 1825, das Escolas Régias de Cirurgia do Porto e de Lisboa, transformadas em 1836 em Escolas Médico-Cirúrgicas. Os diplomados nestes dois novos estabelecimentos vieram engrossar o número dos que, até então, se formavam em Coimbra e o daqueles que viam reconhecidas pelo Físico-Mor e pelo Cirurgião-Mor as suas competência adquiridas pela prática junto de um médico credenciado ou no banco de um hospital. Para melhor conhecer o processo de criação das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto, bem como toda a problemática que as envolveu ao longo da sua história, ler: Viegas, Valentino; Frada, João; Miguel, José Pereira, A Direcção-Geral de Saúde - Notas Históricas, Lisboa, 2006, in http://www.insa.pt/sites/INSA/SiteCollectionDocuments/ADGSnotashistoricas.pdf [consulta em 09.04.2012].
[3] Para um melhor conhecimento do papel das Misericórdias, ler, entre outros: Serrão, Joaquim Veríssimo, A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de História, Lisboa, Livros Horizonte, 1998; Abreu, Laurinda, Memoria da alma e do corpo. A Misericórdia de Setúbal na modernidade, Viseu, Palimage Editores, 1999; Araújo, Maria Marta Lobo de, Dar aos pobres e emprestar a Deus: as Misericórdias de Vila Viçosa e Ponte de Lima (séculos XVI-XVIII), Barcelos, Companhia Editora do Minho, 2000; Lopes, Maria Antónia, Pobreza e controlo social. Coimbra 1750-1850, Viseu, Palimage Editores, 2000; Sá, Isabel dos Guimarães, Lopes, Maria Antónia, História Breve das Misericórdias Portuguesas (1498-2000), Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008; Paiva, José Pedro, Portugaliae Monumenta Misericordiarum, Lisboa, Centro de Estudos de História religiosa; União das Misericórdias Portuguesas, Volumes 1 a 9 – Tomo I, 2002/2012-.
[4] Cf. Rodrigues, António Luis da Costa, “Boticários e Físicos na Lei Administrativa Portuguesa”, separata de Notícias Farmacêuticas, Alcobaça, Tipografia Alcobacense, Lda., 1942
[5] Jorge, Ricardo, “João Semana”, in Sermões dum Leigo, Lisboa, Empresa Literária Fluminense, 1925, p.39.
[6] Silva, António de Morais, Diccionario da Lingua Portugueza, 8ª ed., vol. 2, Rio de Janeiro, Empreza Litteraria Fluminense, 1891, p. 486-487.
[7] No seu Manual de Direito Administrativo, Marcelo Caetano refere que “Partido é uma expressão ‘tradicional’ que designa hoje [primeira edição em 1956] a função exercida em benefício dos habitantes dos concelhos, por conta destes, mas sob a forma de profissão liberal. Cf. Caetano, Marcelo, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10 ª ed., Coimbra, Almedina, 1984, p. 346.
[8] Schwartsmann, Leonor Carolina Baptista, Olhares do médico-viajante italiano: Giovanno Palombini no Rio Grande do Sul (1901-1914), dissertação de mestrado em História apresentado na Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (Brasil), Porto Alegre, 2007, p. 64.
[9] “Arregalo de los Partidos Medicos”, in El Heraldo Médico, Suplemento al num. 89, Madrid, Impreta y Estereotipía de M. Rivadeneyra, 1854, p. 4.
[10] Idem, ibidem, p. 4.
[11] Milhazes, José, Kaplanov, Rachid, António Ribeiro Sanches. O médico dos ‘males de amor’”. Disponível em <http://amontanhamagica.blogspot.pt/2003/05/antnio-ribeiro-sanches-o-mdico-dos.html> [consulta em 10-11-2012].
[12] Sanches, António Ribeiro, Apontamentos para estabelecer um Tribunal e Colégio de Medicina, Covilhã, Universidade da Beira Interior, 2003, p. 12.
[13] Transcrito de Paiva, José Pedro (coord.), Op. cit., vol. 3, pp.332-333.
[14] Castelo Novo tinha, em 1585, o licenciado Jorge Mateus a exercer o cargo de médico do Partido Municipal, nomeado por alvará régio datado de 25 de Maio. Cf. Festas, Alexandre Tavares. Médico do Partido Municipal. Disponível em: <http://www.geneall.net/P/forum_msg.php?id=101084&fview=e>, [consulta em 27-3-2012].Em Braga, o município contratou um médico para o seu Partido em 19 de Maio de 1694. Cf. Arquivo Municipal de Braga, Livro de Registos de 1693 a1704, fl. 32v.. Em 1724, o próprio Ribeiro Sanches, contando apenas 25 anos de idade, exercia o mesmo cargo por contrato com a câmara de Benavente. Cf. Milhazes, José, Kaplanov, Rachid, Op. cit. Disponível em <http://amontanhamagica.blogspot.pt/2003/05/antnio-ribeiro-sanches-o-mdico-dos.html> [consulta em 10-11-2012]. Segundo Marta Lobo também a edilidade de Monção dispunha em 1751 de um médico formado pela universidade de Coimbra, sendo referido no acórdão da câmara que isso acontecia desde “tempos anteguiximos”. Nesse mesmo ano, o município contratou outro médico, o Dr. Domingos Lourenço, a quem pagava a anualidade de 80 mil réis pela obrigação de “acudir a todos os enfermos, principalmente aos pobres”. Cf. Araújo, Maria Marta Lobo de, A Misericórdia de Monção: fronteira, guerras e caridade (1561-1810), Monção, Santa Casa da Misericórdia de Monção, 2008, p. 327. Também os munícipes de Penela dispunham, em 1755, dos serviços de um facultativo que assistia todos os doentes do concelho, e gratuitamente os pobres. Cf. Oliveira, Delfim José de, “Partido Médico”, in Noticias de Penella. Apontamentos Historicos e Archeologicos, Lisboa, Typ. da Casa Minerva, 1884, p. 129-138; Em 1807, municípios como Mértola e Vila Real de Santo António tinham já facultativos. Cf. Nunes, António Miguel Ascensão (José Varzeano), Saúde e Assistência em Alcoutim no Séc. XIX, Alcoutim, Câmara Municipal de Alcoutim, 1993, p. 7; Em 1810, Póvoa de Lanhoso pagava a três cirurgiões para prestarem cuidados aos expostos da terra, totalizado os ordenados pagos os 14:200 réis anuais. Devemos referir, contudo, que pelo valor referido estes assistiam apenas os expostos da Roda, e que eram cirurgiões, atividade ao tempo bastante menos valorizada que a de físico. Cf. Arquivo Municipal da Póvoa de Lanhoso, Livro de Exposto de 1810, Póvoa de Lanhoso, p. 6; Em 1818, D. João VI outorgava provisão à criação de um partido médico na vila de Alcoutim. Cf. Nunes, António Miguel Ascensão (José Varzeano), Op. cit., pp. 6-7.
[15] Oliveira, Delfim José de, Op. cit., p. 129-138.
[16] Pimenta, Belisário, “Subsídios para a história dos partidos médicos em Portugal”, in Arquivos de História da Medicina, (nova série), 8º ano, 1917, p. 3.
[17] Em Espanha, em 1905, exitia um total de 8.000 facultativos municipais, para cobrirem um território no qual habitavam mais de 813 mil famílias beneficiárias de assistência à pobreza. Cf. Esteban de Veja, Mariano, “La assistencia liberal em la España de la Restauración”, in Revista de la Historia de la Economia y de la Empresa. De la Beneficiencia al Estado de Bienestar, passando por los Seguros Sociales, Bilbao, Arquivo Histórico BBVA, 2007, p. 54.
[18] Cardoso, António Augusto de, “Relatório do Congresso dos Médicos Municipais (Lisboa, 15-19 de fevereiro), in A Medicina Moderna, Porto, Ano XVIII, Vol. VI, Fevereiro de 1911, p.273-279.
[19] Para melhor conhecer o processo de criação das Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e Porto, bem como toda a problemática que as envolveu ao longo da sua história, ver: Viegas, Valentino; Frada, João; Miguel, José Pereira, “A Direcção-Geral de Saúde -  Notas Históricas”, Lisboa, 2006, in http://www.insa.pt/sites/INSA/SiteCollectionDocuments/ADGSnotashistoricas.pdf [consulta em 09.04.2012].
[20] M. Ferreira de Mira, Op. cit., p. 358. Não obstante a equiparação prática, apenas os facultativos formados na cidade do Mondego tinham direito ao título académico.
[21] Viegas, Valentino; Frada, João; Miguel, José Pereira, Op. cit., p. 9.
[22] Secção sexta, artigo 127: “Compete á Camara municipal (…), VIº nomear os Medicos, Cirurgiões, e Boticarios de partido; mas não pode suspendê-los nem demittil-os sem preceder a approvação do Conselho de Districto, ouvidos os interessados”. Artigo 128: “É obrigação da Camara municipal: IIº arbitrar e pagar os ordenados e vencimentos de todos os empregados da Camara e estabelecimentos municipaes”. Cf. Código Administrativo, Lisboa, Imprensa Nacional, 1842, p. 32.
[23] Diário do Governo, nº 226, de 6 de Outubro de 1999.
[24] Diário do Governo, nº 292, de 26 de Dezembro de 1901, p. 3598-3614.
[25] Diário do Governo, nº 122, de 26 de Maio de 1911, pp. 2133-2134.
[26] A legislação sobre Partidos Médicos publicada durante o Estado Novo encontra-se coligida in: Ribeiro, José B. Falcão, “Médicos Municipais. Cap. II do Título II da Parte II do Código Administrativo, anotado pelo autor e com índice de assuntos relacionados com o cargo de médico municipal”, separata de Cadernos de Administração Prática, Entroncamento, Tipografia Godal, 1962.
[27] Decreto-Lei 116/84, de 6 de Abril.