Recanto da portaria principal do Hospital António Lopes, com parte dos painéis de Jorge Colaço |
José Abílio
Coelho *
Introdução
Quando, em 1912, António Ferreira Lopes deu
início ao processo que levaria à construção de um hospital para doentes pobres
na Póvoa de Lanhoso, inaugurado em cinco de Setembro de 1917, não se poupou a
esforços para fazer dessa sua obra maior uma casa de saúde exemplar. Da
implantação, num terreno airoso, virado a Sul, situado a poucas centenas de
metros do centro da vila, à construção do edifício, cujo projecto encomendou a
um dos arquitectos mais requisitados, à época, na região[1],
nada correu ao sabor do tempo, antes sob apertada organização e vigilância do
próprio fundador e, nas suas ausências, da do seu sobrinho João Albino de
Carvalho Bastos, a quem pagou bom ordenado quer para acompanhar as obras quer,
depois de entrar em funcionamento o hospital, para ser seu atento
director-executivo ao longo de mais de dez anos (1917-1927). Nem se furtou a
gastos esse “brasileiro” de grande coração, para fazer do seu hospital uma obra
admirável, considerada pela imprensa da época como “um estabelecimento que pode
servir de padrão a todos os que do seu género existem em Portugal, como sendo
de todos o melhor”[2].
Não cabe contudo neste artigo falar-se do
desenvolvimento do projecto, nem da construção do edifício, muito menos dizer-se sobre a qualidade dos materiais e serviços de que o dotou ou da forma
como, a custas exclusivamente suas, o manteve até à data do seu falecimento, em
22 de Dezembro de 1927. Essa história será contada em breve noutro suporte, no
âmbito de estudos académicos que estamos a realizar.
Pretendemos, apenas e só, expor ao de leve os
panéis de azulejos da autoria de Jorge Colaço que iluminam a “portaria
principal” do edifício, classificada como imóvel de interesse público desde
1983[3].
Os Azulejos
de Jorge Colaço
Quer antes, quer após a inauguração do hospital,
a imprensa local teceu rasgados e merecidos elogios à obra maior de António
Ferreira Lopes, observando cada um dos passos dados para a sua conclusão,
comentando cada uma das novidades trazidas pelo projecto, descrevendo o
edifício ao pormenor, valorizando o seu recheio, o material médico-cirúrgico, a
sala de operações, as cozinhas e refeitórios, bem como as preciosas peças de
arte que o edifício comportava.
Jorge Colaço |
O semanário “Maria da Fonte”, em Janeiro de
1916[4],
ou seja, mais de um ano e meio antes da inauguração do hospital, descrevia já,
em pormenor, os belíssimos painéis de azulejos encomendados ao mestre Jorge
Colaço[5],
que forram e embelezam o hall de
entrada, e que ainda hoje constituem uma das preciosidades do edifício. Diz o
autor do texto, assinado com um simples “F” e publicado a quatro colunas em
primeira página, que tão logo o Inverno se foi e a Primavera atirou à rua o seu
primeiro dia de sol, se deslocou, por convite do director João Albino de Carvalho Bastos, a
fazer uma “minuciosa” visita ao hospital da Póvoa de Lanhoso. O que viu,
maravilhou-o. Tudo era harmonioso e artístico, capaz de fazer do hospital em
adiantada fase de construção, uma obra digna da admiração de todo o país. Recebido
no átrium pelo director João Bastos, foi-lhe entregue um jornal (cujo título não
refere), no qual era publicada uma matéria sobre o trabalho que Jorge Colaço
estava a fazer para a obra que agora visitava. O cronista que temos vindo a
referir transcreveu mais tarde, integralmente, no semanário local “Maria da
Fonte”, o que acabava de ler:
“Ao fim vamos encontrar o
gabinete de trabalho desse grande artista que é Jorge Colaço. Estão ali os
panneotix que ele está executando, e se destinam a um hospital construído a
expensas do benemérito Sr. António Ferreira Lopes, em Póvoa de Lanhoso, sob a
direcção do distintíssimo arquitecto Sr. Moura Coutinho (de Braga). São oito.
Executados em azulejo, que se assemelha admiravelmente à tapeçaria, inovação
que é uma glória para Jorge Colaço. O emolduramento é constituído por motivos
ornamentais tirados de costumes populares portugueses.
Vamos tentar descrevê-los.
No ‘Caminho da Romaria’ uma
velha, apoiando-se numa rapariga, vai estrada fora. No segundo plano e
caminhando no mesmo sentido, vai um carro de bois minhoto, conduzido por duas
raparigas; ao longe vê-se um rio e, à direita, a descer uma ladeira, vão
traquitanas e carros característicos da região. ‘A Procissão’, pertence também
à região minhota. À esquerda, na sombra projectada pelo casario, raparigas,
velhas, velhos e moços assistem à passagem da procissão, iluminada pelo sol,
num adorável trecho de luz. Á frente, um grupo de gentis crianças, conduzindo
velas, em que predomina o branco. Segue-se um carro de bois em que vai Nossa
Senhora; ladeando o carro, vêem-se os irmãos vestindo capas encarnadas,
seguindo-se o padre e muito povo. ‘Preparativos’: vêem-se neste panneax duas
Formosas lavadeiras batendo a roupa branca de neve, duma alvura impressionante.
‘Passando um vão’, é também muito característico dos costumes campesinos. Uma
velha, montando uma alimária que conduz à garupa uma rapariguita, vai
atravessando um rio de pouca profundidade. Segurando a rédea, um velhote espera
que o cavalo beba, enquanto uma moçoila de aspecto sorridente, montada num
burro, também atravessa o rio. ‘O Zé Pereira’, tão próprio das nossas aldeias,
também tem nos quadros de Jorge Colaço a sua representação. Um homem conduzindo
um grande bombo bate-lhe desalmadamente, enquanto um grupo de encantadoras
raparigas lhe dirige chufos. ‘O Vira’ — numa praça, em frente da escadaria duma
igreja, rapazes e raparigas dançam o vira ao som duma viola e duma guitarra.
Nos degraus do templo há gente que vê, e à direita, em primeiro plano, uma
velha mendiga esmola. ‘Mal me quer’, como o seu título indica, é o desfolhar
dum malmequer. Uma graciosa pastorita, enquanto ao longe o rebanho pasta, vai
tirando uma a uma as pétalas da flor, para saber, segundo diz a lenda, o grande
amor que por ela sente alguém que está distante. Finalmente, o oitavo [quadro]
intitula-se ‘Um Negócio’, sobressaindo um grupo constituído por dois homens e
uma mulher, em atitude de quem examina um burro, que um negociante lhes quer
vender.
São esplêndidos, de uma beleza
que encanta, deixando-nos os olhos pregados àquelas figuras que Jorge Colaço
traça idealmente, sedutoramente, encantadoramente. Inspirado em trechos da vida
portuguesa, genuinamente característicos das nossas regiões provincianas, os
novos trabalhos de Jorge Colaço evidenciam os méritos dum consagrado, que
sublimemente honra a arte portuguesa.”
“E esses quadros preciosos”,
anota a finalizar o articulista do “Maria da Fonte”, “obra dum grande artista
português, vêm dar realce e valor à já valorosa obra hospitalar desta vila”.
Este texto é elucidativo quer sobre a
fabricação técnica dos painéis, que devem ter sido directamente encomendados a
Jorge Colaço pelo arquitecto Moura Coutinho[6],
e que, à data de publicação, estavam ainda em fase de fabricação; quer sobre a
sua composição pictórica, representando cenas da vida quotidiana da região. Na
verdade, ocupando todas as paredes do átrium no espaço onde não existem portas
ou janelas, as cenas são de uma enorme beleza artística e policromática.
O "brasileiro" António Ferreira Lopes (1845-1927), fundador do Hospital |
Não foi apenas nestes painéis, de extremo bom
gosto e que alegravam a portaria de um hospital, casas de bem-fazer onde em
geral o despojamento e a tristeza intrínseca eram presença constante, que António
Lopes quis deixar um toque que testemunhava o seu bom gosto. Do escadório
interior que levava do rés-do-chão ao piso superior, passando pela decoração do
salão nobre, pelos candeeiros ou pelo mobiliário, em tudo havia o dedo de
alguém que queria que os doentes se sentissem como que num hotel de grande
luxo. Mas, não desmerecendo tudo o resto, foi nestes painéis que o “brasileiro”
das Casas Novas encontrou imagens de alegria e cor para adoçar o coração quer
daqueles que ali se encontravam internados, quer o das muitas visitas que por
ali passavem. Um hospital não tem que ser um local desagradável, despido de
recordações e movimentos que façam com que o doente se sinta ainda mais isolado
e triste. Antes pelo contrário. Mas contra aquilo que acontece hoje em dia,
este grande benemérito da Póvoa de Lanhoso soube, quis e pode dar aos doentes
pobres a quem o hospital se destinava, a possibilidade de, mesmo doentes,
poderem conviver com a beleza e o bem-estar que muitos nem sonhavam existir.
Por isso, aquando da morte do benemérito, alguém escrever que a qualidade do
hospital António Lopes e o carinho que ali era dispensado aos doentes, levava a
que muito desejassem não se curar rapidamente, para poderem usufruir de um
tratamento que, em casa, as suas famílias lhes não podiam dispensar.
Tentativa de
compra
Em 28 de Dezembro de 1977, imbuído de um
espírito de cidadania que merece, ou devia merecer, o aplauso e a gratidão de
todos os povenses, um cidadão de Vila Nova de Famalicão, Eduardo José Brandão,
fez chegar à Secretaria de Estado da Cultura uma carta manuscrita onde dá conta
da existência dos painéis de Colaço e existentes no Hospital António Lopes.
Nessa missiva, solicita o interesse daquele departamento governamental para a
obra de arte, avisando “existir um cidadão de Braga que em tempos ofereceu por
estes quadros mil contos, removendo, caso o negócio se concretizasse, as
respectivas paredes onde se encontram os citados quadros (…)”[7].
Não sabemos hoje quem terá querido comprar os
quadros. Sabemos, isso sim, que esta carta despoletou o processo de
classificação do átrium do Hospital, o que mesmo assim só aconteceria em 1983,
através do Decreto n.º 8/83, de 24 de Janeiro[8].
Entre 1977 e 1983, quase seis anos, portanto,
o processo seguiu os trâmites legais. Em 11 de Março de 1978, a Direcção-Geral
do Património Cultural pedia a intervenção do Conservador do Museu Nacional de
Arte Antiga para serem colhidas fotografias do conjunto que permitissem a sua
avaliação. Entretanto, em inícios de Janeiro do mesmo ano, o hospital era
visitado por um técnico daquela Direcção-Geral, que, em relatório escrito,
informava os seus superiores ter encontradao “um amplo vestíbulo que estabelece
a transição do exterior através de três grandes portas envidraçadas e o acesso
à escadaria defendido por um ‘guarda-vento’ formado por três vãos idênticos,
mas com portas de vidrinhos coloridos”. Diz anda o relator que “o conjunto da
dependência é notável pela coerência decorativa e constitui um exemplar
perfeito do gosto da época (1917), mantendo-se intacto no que respeita a
mosaicos de pavimento, móveis, ‘cache-pots’, pinturas de tectos, revestimento
de azulejos e até o grande candeeiro de centro”, tudo cuidadosamente mantido
“apesar dos sinais de uso e de falta de manutenção” que vão deixando as suas
cicatrizes[9].
O parecer dirigido ao Instituto do Património
Cultural é redigido em Julho de 1981, sendo que a dependência do Hospital
António Lopes designada por “portaria principal”, recebe a classificação de
Imóvel de Interesse Público. São ainda recomendadas obras de conservação, as
quais devem ser conduzidas sob supervisão do Instituto José de Figueiredo. A
decisão final é tomada em 31 de Julho de 1981 e o Decreto de classificação
publicado em Diário da República de 24 de Janeiro de 1983.
Um final feliz para um dos mais belos
recantos arquitectónico-artísticos deste concelho, que se mantém, ainda hoje,
como era em 1917. Mas este, como muitos outros pedaços do nosso património
histório, esteve também condenado a ser levado para outras paragens. Este
ficou, outros pedaços da nossa história não tiveram a mesma sorte.
Hospital António Lopes, inaugurado em 5 de Setembro de 1917 |
Um hospital
Inaugurado em 5 de Setembro de 1917, o hospital manteve-se,
sustentado pelo fundador, até à sua morte, em 22 de Dezembro de 1927. Em 1928, ao
cumprir-se o primeiro ano do falecimento, os seus testamenteiros e alguns
familiares fundaram a “Misericórdia e Hospital António Lopes da Póvoa de
Lanhoso” para, em consonância com os desejos do grande benemérito, que desejava
que o hospital se mativesse em funcionamento para apoiar os pobres doentes do
concelho fosse coordenado pela câmara fosse gerido “por qualquer instituição
que viesse a ser criada para esse fim”, lhe dar seguimento. Para que tal proeza
fosse conseguida, legou-lhe o fundador, em 1927, quase dois milhões de escudos.
Assim se manteve aquela “casa de bem-fazer” ao longo de muitas
décadas, com as alterações administrativas que se conhecem. Mantém-se hoje,
propriedade da Santa Casa da Misericórdia da Póvoa de Lanhoso, que tem nele a
joia mais querida do legado desse grande povoense que foi António Ferreira
Lopes. A terminar, vale a pena lembrar que, não fora a insistência de D. Elvira
Câmara Lopes, esposa do benemérito, talvez a Póvoa de Lanhoso não tivesse o seu
hospital. Mas essa história, mais pormenorizada, pode ser consultada em http://dicionariodepovoenses.blogspot.pt/2011/04/elvira-camara-lopes-1856-1910.html.
**Licenciado em História
pela Universidade do Minho. Doutorando em História Contemporânea, bolseiro de
investigação da FCT e membro do CITCEM/UM.
[1] João de Moura Coutinho de Paiva Cardoso de Lima de
Almeida D’Eça (1872-1954).
[2] Cf. Jornal “República” nº 2.588, de 7 de Fevereiro de
1919, p. 1
[3] Decreto n.º 8/83, in Diário da República, nº 19, de 24
de Janeiro de 1983.
[4] Jornal “Maria da Fonte” nº 1067, de 9 de Janeiro de
1916, pag. 1
[5] Jorge Colaço (1868-1942) nasceu no consulado de
Portugal em Tânger (Marrocos), filho de um diplomata português. Estudou artes
em Lisboa, Paris e Madrid. Exímio desenhador, destacou-se na caricatura, na
pintura e, especialmente, na azulejaria, onde demonstrou capacidades
inovadoras. Está representado em vários edifício públicos nacionais e
internacionais, como a Estação de S. Bento do Porto, Palácio do Buçaco,
Pavilhão dos Desportos de Lisboa, Palácio de Windsor (Inglaterra), antigo
palácio da Sociedade das Nações (Genebra), Brasil, Cuba, Argentina, etc. Os
azulejos exteriores da igreja de Santo Ildefonso, na cidade do Porto, são uma
das suas obras mais apreciadas.
[6]
Santos, Cláudia Emanuel Franco dos, “Os Azulejos de Jorge Rey Colaço no
Hospital António Lopes, na Póvoa de Lanhoso”, in Sousa, Gonçalo de Vasconcelos
e (dir.), Matrizes da Investigação em Artes Decorativas, Porto, Centro de
Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes da Universidade Católica
Portuguesa, 2010, pp.107-126. Trata-se de um bom artigo no que diz respeito à
parte técnico-científica dos azulejos e à prosopografia de Jorge Colaço, mas
muito descuidado na parte de contextualização e história de António Lopes e do
seu hospital. Apenas a título de exemplo, afirma-se no artigo que António Lopes
regressou do Brasil em 1913, “disposto a combater os dolorosos problemas
sociais da sua terra natal”, quando, na verdade, o benemérito povoense retornou
à pátria em finais da década de 1880.
[7]
Direcção Geral do Património Cultural, pasta de correspondência, 1977, entrada
660, sem paginação.
[8]
Decreto n.º 8/83, in Diário da República, nº 19, de 24 de Janeiro de 1983.
[9] Direcção
Geral do Património Cultural, pasta de correspondência, 1978, ofício 1889-2/49-M-2,
sem paginação.