domingo, 10 de junho de 2012

António Ferreira Lopes, comendador da Ordem de Cristo


José Abílio Coelho*



“A Ordem de Cristo poderá ser concedida a militares ou civis e é destinada a premiar os serviços relevantes de nacionais ou estrangeiros, prestados ao País ou à Humanidade (...)”.

                                           Art.º 21º do Decreto 6.205, de 8 de Novembro de 1919

A roseta da Comenda de Cristo outorgada a António Ferreira Lopes




Uma honraria nacional

No dia 29 de Março de 1922 o benemérito povoense António Ferreira Lopes[1] foi agraciado com a Ordem Militar de Cristo, no grau de Comendador. A outorga da distinção foi nessa data publicada em Diário do Governo[2], através de um despacho de 17 de Dezembro de 1921 assinado pelo presidente da República Dr. António José de Almeida, baseando-se o argumento para a atribuição na fundação, na Póvoa de Lanhoso, de um hospital destinado “a doentes pobres”, com o qual aquele antigo emigrante no Brasil quis dotar o concelho onde nascera[3].
O primeiro passo para a atribuição da honraria foi dado pelo então governador civil de Braga, Alberto David Branquinho[4] que, no dia 10 de Agosto de 1921, três dias antes de ser afastado do cargo, remeteu ao ministro do Interior uma carta manuscrita em papel timbrado da câmara dos deputados, na qual propunha a concessão. Nela invocava que “O cidadão António Ferreira Lopes montou na Póvoa de Lanhoso um hospital à sua custa, dotando-o com todos os melhoramentos modernos. Este hospital, denominado ‘António Lopes’, possui cerca de 30 camas para doentes pobres e é inteiramente sustentado à custa daquele benemérito cidadão. Entendendo que é de toda a justiça significar de qualquer forma àquele cidadão o reconhecimento do País pelos seus altruístas serviços, tenho a honra de propor a V. Ex. que o referido cidadão António Ferreira Lopes seja proposto para o grau de Comendador da Ordem de Cristo”.
Na sequência desta carta de Alberto Branquinho, o ministério do Interior fez seguir para a presidência da República, logo a 19 de Agosto, um pedido oficial para a outorga, assim contextualizado: “De harmonia com o meu despacho de 18 do corrente exarado no respectivo processo, tenho a honra de propor ao Conselho da Ordem de Cristo, conforme o disposto no artigo sétimo do Regulamento das diferentes Ordens Militares aprovado por decreto número seis mil duzentos e cinco de oito de Novembro de mil novecentos e dezanove a concessão do Grau de Comendador da Ordem de Cristo ao cidadão António Ferreira Lopes pelos serviços prestados à vila de Póvoa de Lanhoso com a montagem dum Hospital dotado de todos os melhoramentos modernos, destinado a doentes pobres e cuja despesa não só com a montagem, mas ainda com a sustentação do mesmo corre inteiramente à sua custa; cujo acto de altruísmo o coloca ao abrigo do artigo vinte e um do citado Regulamento”[5]. Ao referido ofício seria aposto um carimbo-tipo, no qual o Conselho da Ordem Militar de Cristo, com data de 13 de Setembro, aprovava a proposta.
No dia seguinte, 14 de Setembro, o secretário-geral da presidência da República passava a informar o ministro de Interior, por escrito, da decisão do Conselho das Ordens, remetendo em anexo um “boletim de aceitação” destinado a ser assinado pelo proposto e referindo que, só depois de entregue este boletim na presidência da República devidamente preenchido e assinado, seria o decreto de outorga publicado no Diário do Governo.

Proposta de atribuição da honraria emanada do Ministério do Interior


A atribuição foi, então, comunicada ao benemérito povoense que, em boletim próprio, declarou aceitar “o Grau de Comendador da Ordem de Cristo proposta pelo Ministério do Interior e aprovada pelo Conselho da Ordem em sessão de 13 de Setembro”. Na informação constante do boletim, preenchido pela mão do próprio António Ferreira Lopes, este informava contar 76 anos de idade, ter a profissão de proprietário e não possuir quaisquer outras condecorações, nacionais ou estrangeiras. Na aceitação, datada de 1 de Outubro de 1921, teve o subscritor o cuidado de anotar que se encontrava “acidentalmente na Póvoa de Lanhoso”.
O processo seguiu posteriormente os seus trâmites: em 7 de Outubro de 1921, o director-geral do ministério do Interior remeteu ao seu homólogo da presidência da República, “devidamente preenchido (…), o boletim de aceitamento [sic] do grau de Comendador da Ordem de Cristo, concedido a António Ferreira Lopes (…)” o qual seria ratificado pelo chefe de Estado em 17 de Dezembro de 1921, ficando a aguardar publicação. O que viria a ocorrer no dia 29 de Março de 1922 – véspera da partida de Gago Coutinho e Sacadura Cabral para a primeira travessia aérea Lisboa-Rio de Janeiro.

Silêncio sobre a honraria

António Ferreira Lopes, o benemérito maior que a Póvoa de Lanhoso conheceu ao longo de toda a sua história, era Comendador. Embora as comendas não tivessem, em plena República, a mesma finalidade de proporcionar benesses aos seus titulares, religiosos ou civis, como ocorrera em tempos recuados[6], não deixavam de ser uma marca do prestígio social perseguido por grande parte dos “brasileiros” de torna-viagem[7].
A família do benemérito povoense chegou a referir, aliás, com base na memória oral, que D. Carlos propusera atribuir-lhe um título nobiliárquico[8]. O que nos parece inverosímil. Não é que outros contemporâneos os não tivessem alcançado sem deixarem obra tão marcante. Também alguns dos seus amigos escreveram, aquando da sua morte, que só não teve um “título nobilitante” porque se não interessara por ele. O que também não deixa ser verdade, pois tantos e tantos os compraram tendo muito menor fortuna que António Ferreira Lopes. O que nos parece inverosímil é que o título lhe pudesse ter sido sugerido durante o reinado de D. Carlos pelos “seus gestos humanitários”, já que a verdadeira explosão da obra humanitária de António Ferreira Lopes ocorreu quando o “rei-pintor” era já morto e Portugal vivia sob os auspícios da primeira República.
Mas possuir uma Comenda, ser comendador, também não nos parece que tivesse sido uma meta do fundador do hospital da Póvoa de Lanhoso. Só isso parece justificar que a atribuição da comenda tivesse passado praticamente despercebida. Podemos questionar-nos, ainda, se terá sido por humildade que a honraria foi "escondida" pelo senhor das Casas Novas. Também essa possibilidade nos parece inverosímil pois António Lopes, sendo o grande filantropo que foi, não era homem humilde.
O que sabemos é que nem os jornais nacionais, que noutras ocasiões o levaram às primeiras páginas, nem a imprensa local da Póvoa de Lanhoso, a qual, em notícias de maior ou menor destaque, costumava relatar tudo o que acontecia na vida de António Ferreira Lopes, das suas vindas de Lisboa para a terra natal e o regresso daqui à capital onde residia a maior parte do ano, às suas partidas para períodos termais ou para as muitas viagens ao estrangeiro, das suas presenças em festas e espectáculos até às doações mais pequenas, que fazia constantemente, para já não falarmos nos grandes melhoramentos empreendidos na terra, às suas custas, esses, tratados em matérias que, muitas das vezes, ocupavam várias páginas, se referiu ao assunto. Não obstante, sobre a Comenda, nem uma breve nota de duas linhas.

Hospital António Lopes


Acresce a este estranho “esquecimento” o facto de, em nenhum dos números especiais dos periódicos locais publicados aquando da sua morte inserindo dezenas de textos de outros tantos autores, nenhum dos artigos ou articulistas ter referido a Comenda nem o ter tratado por comendador, o que era comum acontecer com outros detentores da mesma honraria.
Desconhece-se ainda se António Ferreira Lopes recebeu a comenda das mãos do presidente da República ou como lhe terá sido entregue[9]. O decreto nº 6.205, que regulamentava as Ordens, diz, no artigo 8 do capítulo 1, que “as propostas fundamentadas dos ministros para a concessão dos diferentes graus da Ordens militar de Cristo, Avis e Santiago de Espada a nacionais serão enviadas para os respectivos conselhos até 30 de Junho de cada ano, sendo a concessão feita no dia 5 de Outubro pelo Presidente da República”.
Nesse ano de 1922, porém, na data prevista para a concessão, o presidente António José de Almeida encontrava-se em visita oficial ao Brasil, de onde apenas regressou a 11 de Outubro. Na mesma ocasião, António Ferreira Lopes estava em férias na Póvoa de Lanhoso, de onde só partiu para Lisboa a 13 de Novembro[10]. É provável que a comenda tenha sido entregue ao benemérito em privado, mas não nos foi possível obter essa informação, apesar de termos pesquisado os jornais nacionais entre 29 de Março de 1922 e 30 de Novembro de 1923.

Cruz e Roseta da Ordem de Cristo que pertenceu a António Lopes



A amizade com o Presidente António José de Almeida

António Ferreira Lopes nasceu num Portugal monárquico e viveu grande parte da sua vida adulta num Brasil imperial. Quando regressou à pátria natal, em 1888, ainda no Brasil não tinha sido implantada a República, o que só viria a ocorrer no ano seguinte à sua partida (1889). Mas, tendo deixado vários familiares e amigos íntimos e grandes interesses económicos no Brasil, país com o qual manteve até ao fim da vida um contacto estreito, é certo que, de lá, lhe fizessem chegar os ecos das mudanças introduzidas pelo novo regime.
Em Portugal, até 1910, o benemérito da Póvoa de Lanhoso não assumiu, pelo menos abertamente, qualquer posição favorável às movimentações que levaram à implantação da República. Não seria um monárquico empedernido mas é certo que em Agosto de 1908 pagou do seu próprio bolso dois retratos ricamente emoldurados de el-rei D. Manuel II, que estiveram expostos nas montras da “Loja Central”, pertencente ao seu sobrinho João Albino de Carvalho Bastos, os quais viriam, em Novembro desse mesmo ano, ser afixados nas paredes das salas de aulas, masculina e feminina da escola primária da vila, durante a entrega de prémios aos alunos mais destacados, prémios esses que o benemérito e sua esposa D. Elvira patrocinavam[11].
Não é difícil entender este posicionamento do “brasileiro” das Casas Novas pois, até 1910, os adeptos assumidos da República eram muito poucos, especialmente na província. Contudo, após o “5 de Outubro”, mantendo embora total distanciamento em relação à política activa, António Ferreira Lopes viria a estabelecer estreitos laços de amizade com António José de Almeida. Era simpatizante do Partido Evolucionista e todos os anos, no dia em que se comemorava a implantação, mandava içar a bandeira da República na varanda do seu palacete das Casas Novas.
António José de Almeida, um dos mais prestigiados políticos da 1ª República[12], várias vezes deputado e ministro, primeiro-ministro entre 16 de Março de 1916 e 25 de Abril de 1917 (durante o “ministério da União Sagrada”), chefe de Estado entre 5 de Outubro de 1919 e 5 de Outubro de 1923 e grão-mestre da Maçonaria, chegou mesmo a estar na Póvoa de Lanhoso de visita António Ferreira Lopes.




A visita ocorreu no dia 1 de Novembro de 1917, quando Almeida se deslocou a esta vila a partir do Gerês, onde se encontrava em tratamento termal. O já ex-presidente do governo (futuro presidente da República), e então chefe do Partido Evolucionista, foi esperado ao cimo da Avenida da República por vários cavalheiros “de todas as facções políticas” e por uma banda de música e girândolas de foguetes. Dali, e depois de muitos vivas! à sua pessoa, seguiu no automóvel em que se fazia deslocar para o palacete de António Ferreira Lopes, onde recebeu cumprimentos de boas-vindas, sendo-lhe de seguida servido “um lauto almoço”. Findo este, o Dr. António José de Almeida visitou demoradamente “o modelar” Hospital A. Lopes, “ficando magnificamente impressionado”. A banda filarmónica acompanhou toda a visita do médico e político natural de Penacova, junto ao qual, na visita ao hospital e para além do anfitrião, se encontravam o líder dos evolucionistas locais, Dr. Armindo de Freitas, o major-médico de Vizela José Maria Rodrigues Braga, o Dr. Pereira Júnior, redactor do jornal “A República”, bem como outros destacados membros do partido. A visita decorreu durante toda a tarde tendo, pelas 18 horas, o político tomado a sua viatura para se retirar de novo a caminho do Gerês[13].
A amizade entre ambos manteve-se pelos anos seguintes. Em 1922, então já presidente da República, António José de Almeida outorgaria a António Lopes a Comenda da Ordem de Cristo. E quando o benemérito da Póvoa de Lanhoso morreu, em Dezembro de 1927, Almeida fez publicar sobre ele um pequeno mas expressivo texto, intitulado “Um Benemérito”[14] no qual afirma:


“António Ferreira Lopes foi um benemérito em toda a extensão da palavra. Em vida espalhou subsídios, coadjuvações e amparos às mãos-cheias. Depois de morto, a sua munificência desentranhou-se larga e ubérrima como uma fonte pujante de benemerência. (…).
Este homem simples, a um tempo amorável e rígido, manteve-se, em tudo, fiel às suas tradições de filho do Povo. Jamais se aristocratizou, a não ser na espontânea nobreza dos seus sentimentos, que constituíram uma rara estirpe moral. E sendo em vida um exemplo da democracia generosa e sadia, ainda do túmulo nos deu lições de quanto valor para os homens de coração bem formado a recordação das gentes humildes, de cujo seio provieram e cuja convivência lhes modelou o porte moral (…)”.


No seu testamento, elaborado no Verão de 1927, cerca de meio ano antes de falecer em Lisboa, António Lopes também se não esqueceu do amigo, escrevendo: “Ao excelentíssimo Senhor Doutor António José de Almeida, pela muita consideração que particularmente me merece, deixo como lembrança o meu tinteiro de prata, com monograma, que se acha na parte baixa do meu cofre, ainda por estrear”[15].
António Ferreira Lopes faleceu em Lisboa no dia 22 de Dezembro de 1927; António José de Almeida faleceu na mesma cidade a 31 de Outubro de 1929.


A Ordem de Cristo

A Ordem de Cristo teve a sua origem na Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo, instituída em 14 de Março de 1319 pelo Papa João XXII — através da Bula Ad ea ex-quibus — a pedido de el-rei D. Dinis. Esta antiga Ordem Militar sucedeu, no reino de Portugal e dos Algarves, a uma outra, entretanto extinta: a Ordem dos Templários.
Após a perseguição a que estes foram sujeitos pelo rei francês Filipe, O Belo, o qual, para se apoderar dos imensos bens que os Templários possuíam em França, os acusou de heresia (acusação hoje comprovadamente infundada), o Papa Clemente V, pressionado pelo monarca gaulês, promoveu, em 1312, a extinção da Ordem.
O fim dos Templários surtiu também efeitos em Portugal, onde eram possuidores de grandes riquezas. Contudo, D. Dinis, temendo que os seus bens em território nacional passassem para as mãos do Sumo Pontífice Romano, solicitou a criação de uma outra Ordem: a Ordem Militar de Cristo, o que ocorreu em 1319. O rei poeta conseguiu que os bens que haviam pertencido aos Templários fossem entregues a esta nova congregação, na qual foram também aceites todos os Templários que se quiseram integrar. A antiga sede templária de Castro Marim foi desactivada, sediando-se a Ordem de Cristo em Tomar.
Os seus membros viriam a desempenhar um papel significativo nos Descobrimentos, conquistas e evangelização de novas terras a partir da altura em que o infante D. Henrique se tornou seu administrador. Em 1484, D. Manuel I colocou-a na dependência da Coroa. Em 1551, na sequência do refortalecimento dos poderes régios, o Papa Júlio II acedeu a um pedido de el-rei D. João III concedendo ao monarca, in perpetuum, pela Bula Praeclara cahrissimi, a união dos mestrados das três Ordens militares portuguesas.
A Ordem de Cristo sofreria nova reforma em 1789, no reinado de D. Maria I, ficando, enquanto ordem monástico-militar, duplamente sujeita aos poderes papal e do rei de Portugal, que assumiu o papel de seu administrador.
Extinta em 1834 enquanto ordem religiosa, com a afirmação do Liberalismo, manteve-se, contudo, como ordem honorífica na sequência da entrada em vigor da Carta Constitucional.
Em 1910, com a implantação da República, o governo provisório viria, por decreto de 15 de Outubro, a extinguir todas as antigas ordens nobiliárquicas, nas quais as militares estavam incluídas (excepção para a Ordem de Torre e Espada). Contudo, alguns anos depois, com Portugal envolvido na I Grande Guerra e surgindo dificuldades em distinguir os autores de feitos cívicos ou militares, o governo, através da Lei nº 635, de 28 de Setembro de 1916, restabeleceu as Ordens. As Militares de Avis e Torre e Espada foram alvo de legislação por decretos de 25 e 26 de Setembro de 1917, e as de Cristo e de Santiago de Espada por decreto de 1 de Dezembro de 1918[16] e novamente por decreto (nº 6.206) de 8 de Novembro de 1919.
A partir desta data, as antigas ordens honoríficas mantiveram-se, apesar dos regulamentos de atribuição terem sido alterados por diversas vezes ao longo das décadas, tendo também sido criadas outras Ordens.
A Ordem de Cristo tem cinco graus, ordenados por ordem ascendente: Cavaleiro ou Dama, Oficial, Comendador, Grande-Oficial, e Grã-Cruz, sendo composta por distintivo (cruz latina, pátea de esmalte vermelho, perfilada de ouro, carregada de cruz latina de esmalte branco); banda de seda moiré, terminando em forma de laço, tendo pendente o distintivo; e placa em raios (de prata para comendador), tendo no centro um círculo de esmalte branco carregado da cruz da Ordem, perfilada de ouro e circundado de um festão de louro, em ouro[17]. 


Posfácio: Os "descaminhos" da comenda

Após a morte de António Ferreira Lopes, quer a “cruz de pescoço” com a sua banda moiré, quer a “placa”, que muito provavelmente se encontrariam guardadas na sua casa da Avenida da Liberdade, em Lisboa, ficaram em posse do seu sobrinho Arlindo António Lopes. Este, numa das suas viagens ao Rio de Janeiro, onde nascera e onde regressava amiudadas vezes, visto deter ali negócios, levou-as consigo. Anos mais tarde, as peças foram encontradas entre os seus pertences pelo filho Fernando Guimarães Lopes, que as entregou ao Engenheiro Albino Eurico Pinto da Silva, então presidente da direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Póvoa de Lanhoso o qual, por sua vez, as trouxe para Portugal e as depositou no antigo quartel do Largo António Lopes. Com o passar dos anos, a comenda, guardada no fundo de uma gaveta, foi esquecida. Entretanto, os Bombeiros construíram um novo quartel, tendo procedido a mudanças gerais com tudo aquilo que as mudanças tantas vezes implicam no arrumar, escondendo, ou no deitar fora o que parece que não presta...
Até que, em 2006, quando iniciamos a investigação tendente à elaboração de uma biografia do benemérito povoense, tivemos acesso a uma antiga carta de Fernando Guimarães Lopes onde este afirmava ter depositado nas mãos do Engenheiro Pinto da Silva a comenda que pertencera a seu tio-avô. Mas ninguém nos Bombeiros se lembrava da honraria e, quer Fernando Guimarães Lopes, quer Albino Pinto da Silva, que podiam ajudar a esclarecer a questão, haviam já falecido.
A procura iniciada mostrou-se inútil, e a dúvida surgiu: nos jornais não havia uma única referência; entre os familiares contactados ninguém se lembrava da existência dessa comenda; e nos trabalhos publicados pelos diversos historiadores que se haviam debruçado já sobre a vida do “brasileiro” das Casas Novas, nada constava sobre qualquer honraria. A dada altura, pareceu-nos que só havia um caminho para se confirmar, ou não, a sua existência: tentar encontrar o processo de atribuição nos arquivos das Ordens Honoríficas depositados na Torre do Tombo de Lisboa.
Ali, também nada existia. “É difícil, mas pode ainda não ter vindo tudo”, disse-nos na altura um dos arquivistas ao observar a nossa desilusão. Restava pois uma última possibilidade: se na Torre do Tombo ainda não estava todo o arquivo das Ordens Honoríficas, o processo que procurávamos podia estar ainda no arquivo da presidência da República.
E, assim, no dia 14 de Dezembro de 2006, entrámos no arquivo da Presidência, a funcionar num anexo do palácio de Belém. À nossa pergunta as técnicas, atenciosas e simpáticas, achavam impossível que ainda ali estivesse. Embora pouco convencidas pela nossa persistência, por descargo de consciência, lá foram à procura de alguma coisa que pudesse não ter sido ainda enviada a Torre do Tombo. Até que, meia hora depois, com o mais rasgado sorriso de felicidade estampado no rosto, uma funcionária superior dava-nos a conhecer que, afinal, havia ainda alguns processos que tinham ficado para trás; e que, entre eles, numa finíssima pasta de papel acastanhado, se encontravam a meia dúzia de folhas que constituíam o processo da outorga da Comenda da Ordem de Cristo a António Ferreira Lopes. Tinha o número 382.
A nossa primeira reacção foi de algum cuidado: podia ter havido outra pessoa com o mesmo nome. Mas a prova real lá estava: o termo de aceitação, assinado “acidentalmente na Póvoa de Lanhoso” no dia 1 de Outubro de 1921, não deixava margem a dúvidas. O comendado não podia ser outro senão o filantropo povoense.
De regresso à Póvoa de Lanhoso, a vontade de encontrar a comenda redobrou, tal como havia redobrado a dúvida: e se alguém, desconhecendo do que se tratava, ou dando-lhe pouca importância, a fez desaparecer? A dúvida tinha consistência: ao longo da investigação sobre António Ferreira Lopes, tantas vezes nos tinham confessado a destruição de peças, documentos e fotografias por serem “coisas inúteis” que já nada nos poderia parecer estranho. Surgiu-nos então o nome de uma pessoa que podia saber de alguma coisa, que podia ter uma vaga ideia de ter visto “uma cruz, grandinha, vermelha, brilhante...” Tratava-se do actual ajudante de comando da corporação dos Bombeiros povoenses, António Veloso. Desde há alguns anos que, para além do cargo na equipa de comando era funcionário administrativo da Associação Humanitária mas, ao mesmo tempo, constituía-se como uma espécie de guardião do templo: tudo lhe passava pelas mãos e na frente dos olhos.
A princípio, quando lhe perguntámos não se lembrava de nada que tivesse a ver com o que se lhe pedia. Porém, dias depois, telefonou-nos: achava que já vira uma cruz como aquela de que lhe faláramos, só não se recordava onde...
Nessa mesma tarde aparecemos no quartel, pedindo a sua ajuda na procura da “cruz”. “Pode ser que esteja numa caixa onde guardamos botões e fivelas velhas retiradas às fardas inutilizadas…”, disse António Veloso depois de parar uns segundos para pensar.
Encontrámos a caixa no fundo de um velho armário que tinha ido do antigo quartel. Virámos o que continha sobre uns jornais que estendemos no chão da garagem da nova sede e, de repente, entre botões velhos, parafusos, símbolos de gola, antigas divisas e desgastadas fivelas em metal dourado, lá surgiu a ponta de uma cruz esmaltada. Remexendo, já com alguma agitação, o conteúdo da caixa de madeira, lá encontrámos também, no interior de uma maltratada embalagem de cetim, a “placa”. Para nós, para mim e para o António Veloso, foi como se tivéssemos entrado no túmulo ainda virgem de Tutankhamon!
Contactei, então, o presidente da direcção da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários, Dr. João Tinoco de Faria, dando-lhe nota do achado e solicitando-lhe autorização para proceder à limpeza e tratamento das peças, autorização essa que, acompanhada de palavras de estímulo, foi concedida de imediato.
Infelizmente, apesar da limpeza a que foi sujeita, a cruz não foi integralmente recuperável, dado que parte do esmalte se havia perdido nas várias andanças da comenda. Mas não deixa, assim mesmo, de ser um conjunto de grande interesse, quer histórico quer estimativo, para os Bombeiros Voluntários e para o concelho da Póvoa de Lanhoso em geral.
As duas peças são, hoje (05.09.2010), devolvidas à instituição a que pertencem, depositadas nas mãos do seu actual presidente, padre Luís Manuel Peixoto Fernandes, e colocadas em exposição, numa moldura própria a elas destinada, na sala de honra de quartel.
Que o futuro saiba protegê-las e guardá-las convenientemente, fazendo delas um pedaço mais da nossa memória colectiva.



**Licenciado em História pela Universidade do Minho. Doutorando em História Contemporânea, bolseiro de investigação da FCT e membro do CITCEM/UM.
Este artigo foi publicado num opúsculo, sob o mesmo título, pela Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários da Póvoa de Lanhoso em 5 de Setembro de 2010, altura em que a comenda, devidamente emoldurada, foi colocada em lugar nobre, numa das dependências do quartel da corporação (ver posfácio).
[1] Natural do concelho da Póvoa de Lanhoso, onde nasceu em 1845, António Ferreira Lopes foi um dos milhares de portugueses que, nos meados do século XIX, partir, ainda jovem, para o Brasil, onde viria a enriquecer. Regressou ao seu país em finais da década de 1880, desenvolvendo, a partir dessa data, no seu concelho natal, uma obra ímpar, que o transformou num exemplo de benemerência em toda a região.
[2] Cf. Diário do Governo, II série, número 72, de 29 de Março de 1922. Lê-se no despacho que “Atendendo às circunstâncias que concorrem no cidadão António Ferreira Lopes: hei por bem, ouvido o Conselho da Ordem de Cristo, conceder ao referido cidadão António Ferreira Lopes o grau de comendador da mesma ordem. O Ministro do Interior assim o tenha entendido e o faça executar. Paços do Governo da República, 17 de Dezembro de 1921. — António José de Almeida — Francisco Pinto da Cunha Leal”.
[3] O processo de atribuição encontra-se depositado no Arquivo das Ordens Honoríficas, no Palácio de Belém, tendo o processo ali arquivado o número 382.
[4] O major Alberto David Branquinho foi governador civil de Braga de 20 Junho de 1921 e 13 de Agosto de 1921
[5] No Art.º 21º do Capítulo IV do Decreto 6.205, de 8 de Novembro de 1919 (I série — nº 228), que “manda pôr em execução” as Ordens Militares Portuguesas, suspensas no rescaldo da Implantação da República, lê-se que: “A Ordem de Cristo poderá ser concedida a militares e civis e é destinada a premiar os serviços relevantes de nacionais ou estrangeiros, prestados ao País ou à Humanidade, e os seus diversos graus serão conferidos em correspondência com a magnitude desses serviços e a categoria social do agraciado. A artigo seguinte diz que o distintivo da Ordem é uma cruz de esmalte vermelho, perfilada de ouro, fendida ao meio com outra de esmalte branco, e fita vermelha. Os graus são: Cavaleiro, Oficial, Comendador, Grande Oficial e Grã-Cruz. A insígnia para o grau de comendador é uma “placa de prata em raios, tendo ao centro um círculo de esmalte branco circundado de ouro e carregado da cruz da Ordem”.
[6] Cf. SERRÃO, Joel, MARQUES, A. H. de Oliveira, “Comendas”, in Dicionário de História de Portugal (vol. II, Porto, Figueirinhas, 1985, p. 106.
[7] Para um melhor conhecimento desta temática, cf. entre outros: Alves, Jorge Fernandes, Terra de Esperanças. O Brasil na emigração portuguesa, in “Portugal e Brasil – Encontros, desencontros, reencontros”, Cascais, Câmara Municipal de Cascais/VII Cursos Internacionais, 2001, p. 113-128; Alves, Jorge Fernandes, O ‘brasileiro’ oitocentista: representação de um tipo social, in Vieira, Benedicta Maria Duque (org.), “Grupos sociais e estratificação em Portugal no Século XIX, Lisboa, ISCTE (C.E.H.C.P.), 2004, p. 193-199; Machado, Igor José de Renó, O ‘brasileiro de torna-viagens e o lugar do Brasil em Portugal, in “Estudos de História”, nº 35, Janeiro-Fevereiro de 2005, Rio de Janeiro, 2005, p. 47-67; Araújo, Maria Marta Lobo de, Os brasileiros nas Misericórdias do Minho (séculos XVII-XVIII), in Araújo, Maria Marta Lobo de (org.), “As Misericórdias das duas margens do Atlântico: Portugal e Brasil (séculos XV-XX)”, Cuiabá (Brasil), Carlini & Caniato Editorial, 2009, p. 229-260.
[8] O sobrinho-neto Fernando Guimarães Lopes, numa resenha sobre António Ferreira Lopes, afirma: “Foi pessoa das relações do Rei D. Carlos que, sabedor dos seus gestos humanitários, em Portugal e no Brasil, quis agraciá-lo com título honorífico à sua escolha (barão, conde, visconde…), o que ele declinou”, acrescentando que esta informação lhe havia sido transmitida por seu pai, Arlindo António Lopes, sobrinho, amigo, principal testamenteiro e um dos grandes herdeiros de Ferreira Lopes. Cf. Arquivo da Casa-Vila Beatriz de Santo Emilião, cartas, documentos sem paginação.
[9] Segundo preciosa informação do Dr. Paulo Jorge Estrela, um dos maiores especialistas portugueses em Falerística, quando por nós questionado sobre a forma como estas comendas eram entregues, referiu que, e dado que a proposta partiu de um governador civil, a comenda pode ter sido entregue numa pequena cerimónia no gabinete deste, em nome do chefe de Estado. Paulo Estrela acrescenta que, “na época, depois da restauração das Ordens e no pós-Guerra, eram concedidas muitas Ordens, que ‘saiam’ pelos vários ministérios. A intervenção cerimonial do Presidente da República nelas era algo escasso: quase sempre reservado para as concessões colectivas, militares ou dos graus mais elevados. Na prática competia aos vários ministros a sua representação, e recordo que o grau de Comendador, sem o querer menosprezar, se situa a meio da tabela, abaixo do Grande-Oficial e do cimeiro Grã-Cruz”. Hoje, acrescentamos nós, a entrega das honrarias nacionais, salvo raras excepções, ocorrem em dias específicos, como o 25 de Abril ou o 10 de Junho, sendo quase todas as honrarias e graus entregues pelo presidente da República em cerimónia pública.
[10] “Maria da Fonte” de 12 de Novembro de 1922. Refere expressamente que partia no dia seguinte para Lisboa o Sr. António Ferreira Lopes.
[11] Maria da Fonte nº 684, de 30 de Agosto de 1908
[12] Activista do movimento republicano e membro da Maçonaria, tal como muitos outros republicanos, António José de Almeida nasceu a 27 de Julho de 1866, em Penacova, e morreu em Lisboa, a 31 de Outubro de 1929. Extraordinariamente popular pelos seus dotes oratórios, participou na preparação das revoltas fracassadas de 1891 e 1908 e da revolução triunfante de 1910, que instauraria a República. O seu combate contra o regime monárquico desenvolveu-se ora no Parlamento (foi eleito para as duas últimas legislaturas da Monarquia), ora na imprensa (dirigiu e fundou vários jornais e subscreveu artigos contundentes, como o “Bragança, o Último”, que o levou à prisão). Instaurada a República, coube-lhe em 1910 assumir a pasta do Interior do Governo Provisório Republicano, o que levou a grande desgaste da sua figura, já que teve de enfrentar graves problemas sociais. Foram tão profundas as divergências, pessoais e políticas com Afonso Costa e outros republicanos, que António José de Almeida protagonizou uma cisão no Partido Republicano, formando o seu próprio partido (Partido Republicano Evolucionista, 1912-1919), mais conservador. Aceitaria, no entanto, integrar o governo da “União Sagrada” (1916-1917), que viria a chefiar, acumulando com a pasta das Colónias, no momento crucial da entrada na I Grande Guerra. Passado o interregno Sidonista, em que foi perseguido, veio, em 1919, a ser eleito presidente da República. Nessa qualidade visitou o Brasil, numa altura em que ali se registava uma forte corrente nativista que se exprimia por actos xenófobos anti-portugueses, que António José de Almeida contribuiu para minimizar, mercê do seu invulgar talento oratório. Foi, em toda a vigência da República parlamentar, o único presidente que completou o seu mandato, em anos caracterizados por uma grande crise social e política, que bem se espelha no facto de ter nomeado dezasseis ministérios e de se terem registado numerosas alterações da ordem pública, a mais grave das quais seria a “Noite Sangrenta” (de 18 para 19 de Outubro de 1921), episódio cujas motivações nunca foram inteiramente esclarecidas, em que um grupo de marinheiros amotinados atravessou Lisboa deixando atrás de si um rasto de sangue, tendo sido assassinados, entre outros, o chefe do Governo António Granjo e o contra-almirante Machado Santos. Cf. António José de Almeida. In Inforpédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2010. [Consult. 2010-08-10], disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$antonio-jose-de-almeida>.
[13] “Maria da Fonte” nº 35, de 4 de Novembro de 1917.
[14] “Maria da Fonte” nº 35, de 29 de Janeiro de 1928.
[15] Testamento de António Ferreira Lopes, cópia em posse do Autor.
[16] BRAGANÇA, José Vicente Pinheiro de Melo de, “As Ordens Honoríficas Portuguesas”, in Museu da Presidência da República (coordenação de Diogo Gaspar), Lisboa, Museu da Presidência da República/CTT, 2004, p. 112.
[17] BRAGANÇA, O.c., pp. 109-118.