José
Abílio Coelho[1]
Fotografia do cadáver, reproduzida numa das muitas pagelas impressas em 1922 |
Um cadáver incorrupto
No mês de Junho de 1880 a vila da Póvoa de
Lanhoso encontrou, no cadáver incorrupto de uma mulher achado ao ser reaberta uma
das sepulturas existentes no interior da velha capela da Senhora do Amparo, um
motivo de espantoso fervor religioso. Mais de quatro décadas volvidas, a
exposição pública do corpo sem autorização das entidades religiosas iria levar
a um vigoroso “braço de ferro” e a sérias divisões entre parte das elites
locais e a Igreja, obrigando à intervenção do próprio arcebispo de Braga D.
Manuel Vieira de Matos.
Este derradeiro episódio da saga do cadáver
incorrupto ocorreria em 1922-1923, altura em que a I República começara já a dar
os primeiros sinais de grande fraqueza com a Igreja a tentar, a todo o custo,
aproveitando a descrença que reinava sobre os republicanos radicais, fazer
frente a tudo quanto colocasse ainda mais em causa a autoridade perdida depois
da implantação de 5 de Outubro de 1910[2].
E D. Manuel Vieira de Matos, o arcebispo que “excomungou” aqueles que, em
Lanhoso, ousaram desafiar a sua autoridade, interditando ainda todo o conjunto
sacro do monte do Pilar e respectiva confraria, trazia consigo décadas de lutas
contra o posicionamento anticlerical dos homens da República[3].
A história
de Cristina de Bragança – assim fora, em vida, o nome da mulher cujo corpo
intacto havia sido encontrado - vinha, contudo, muito de trás.
Numa das
suas crónicas, publicada em 1897 no semanário “A Maria da Fonte”, o redactor Francisco
Manuel Martins de Oliveira contava que pelo ano de 1864, ao ser aberta a
sepultura número seis da capelinha de Nossa Senhora do Amparo, à época
existente no largo do mesmo nome (ver planta topográfica), foi encontrado um
caixão em bom estado e, aberto este, dentro dele o cadáver incorrupto de uma
mulher[4].
Esta pequena capela era, à época, um dos poucos templos onde os habitantes da
vila, aqueles que moravam a norte do ribeiro Pontido e pertenciam à freguesia
de Lanhoso, exerciam as suas obrigações religiosas. Situava-se a poente do
largo e, para além das sepulturas existentes no seu interior, tinha no seu adro
um pequeno cemitério, cercado por uma grade de ferro[5].
Planta topográfica da Vila da Póvoa. A velha capela do Amparo está assinada pela seta azul |
Seguindo
ainda o relato de Martins de Oliveira, sabemos que os coveiros, perante tal
descoberta e depois de terem tirado para fora o caixão, aprofundaram a cova,
voltando a depositar nela o esquife com o corpo intacto da mulher. E que, sobre
este, colocaram uma outra urna, contendo o cadáver de António Luzia, que foi
residente na vila e de todos conhecido pela alcunha de Gaba. Como a sepultura tivesse ficado nesta altura bastante
profunda, alguns anos depois e dada a falta de espaço para enterramento de cadáveres,
ainda ali foram sepultados os restos mortais do padre António Luiz de Araújo
Carvalho Reis, que havia sido do lugar de Valdemil.
Dezasseis
anos passados, ou seja, a 3 de Junho de 1880, a mesma sepultura voltou a ser necessária,
agora para nela ser enterrado do cadáver de José Joaquim da Silva Leite, falecido
no lugar de São Pedro.
O padre
Francisco José Barbosa, professor de instrução primária na vila e responsável
pela orientação da capela, ordenou aos coveiros que, como mandavam as leis e as
regras da saúde pública, fosse bem aprofundada a cova. O integral cumprimento da
sua ordem por parte dos coveiros levou a que, no fundo, sob os restos de tábuas
de dois outros corpos ali inumados na última década e meia, fosse encontrado,
inteiro, um caixão; e dentro dele o corpo duma mulher por desgastar. Tratava-se
do mesmo caixão e corpo que em 1864, por ter aparecido na mesma situação,
regressaram à terra depois de aprofundada a cova. Em face desta descoberta, os
coveiros, por ordem do referido sacerdote, voltaram a cobrir de terra o dito
caixão incorrupto, tendo o cadáver do mencionado José Joaquim da Silva Leite
ido a enterrar noutra sepultura[6].
Alarido na vila
A notícia do
aparecimento de um corpo por corromper constou, contudo, nos quatro cantos da
vila e o seu eco chegou às freguesias circunvizinhas.
Duas semanas
volvidas, ou seja a 18 do dito mês de Junho de 1880, um grupo significativo de
homens das redondezas dirigiram-se à capela para confirmarem o que ouviam. Não
deve ter sido uma manifestação espontânea, antes uma acção combinada das elites
e das autoridades locais pois, ali chegados pelas oito e meia da manhã, deram princípio
à exumação do cadáver. A dois metros de profundidade – é ainda Martins de
Oliveira, testemunha ocular e na altura vereador da câmara, quem informa – “apareceu
um caixão, sem tampa, que á vista parecia cheio de terra”. Trazido com custo
para fora da sepultura e retirada a terra do interior da urna com todo o
cuidado, encontraram dentro dela “o corpo de uma mulher em perfeito estado de
conservação, ainda que um tanto enegrecida, cor de terra, amortalhado em hábito
azul perfeitamente conservado, assim como a camisa e o rosario inteiro, e os
cabelos, castanho-escuro, na cor natural”.
Para todos,
os que estavam presente na exumação e para os que nas horas seguintes tomaram
contacto com o achado, o corpo incorrupto mais não era que o de uma santa.
Havia pois que tratá-lo como tal. E disso se encarregou a senhora D. Marcelina
Passos, esposa do escrivão da fazenda no concelho, Fortunado Antunes Leite de
seu nome, a qual “lhe penteou o cabelo e lhe vestiu o corpo com toda a decência”.
Como a
notícia tivesse corrido célere não apenas na vila mas por todas as freguesias,
acorreu à capela muito povo, em tropel, para ver, dizia-se, “o grande prodígio”.
A visita à capela para ver a “santa” foi organizada. O povo, em fila, entrava
no pequeníssimo templo pela porta da frente e saída pela lateral “havendo em
tudo a melhor ordem e completo sossego, o que causou admiração por serem
milhares de pessoas que ali acorreram”.
Isso
aconteceu no primeiro dia e nos seguintes. E por isso o corpo manteve-se
exposto ao longo de 28 dias, sendo cada vez mais as pessoas que ali vinham por
motivos religiosos ou por simples curiosidade, já não sendo só o da vila e das
freguesias circunvizinhas, mas gente de chegava de terras mais longínquas.
“Santa Cristininha” passou a ser invocada para acudir às aflições mais variadas
de cada um dos que ia conhecendo a história, e rapidamente a caixa de esmolas
da capela de encheu de dinheiro e de peças de ouro.
Cristina de Bragança, exposta da Roda
Mas de quem
era o corpo de mulher que, embora sepultado há quase quarenta anos, se mantinha
incorrupto? Os mais velhos habitantes da vila ainda se lembravam: pertencia a
Cristina de Bragança, uma exposta da Roda que fora criada na freguesia de
Lanhoso por José António de Paula e sua mulher Gertrudes Maria Pereira[7].
Fora casada com José António Gonçalves, embora do casamento não houvesse
filhos, e tinha falecido em 1844[8].
A sua habitação, onde, no rés-do-chão, possuía uma mercearia, seria na parte
norte do largo do Amparo, numas casas demolidas na década de 1930 para aí ser
construído o actual edifício dos Paços do Concelho[9].
Assento de óbito de Cristina de Bragança |
Martins de
Oliveira, que nos deixou a memória a que temos vindo a recorrer, ainda a conheceu
bem, como o próprio afirma, adiantando tratar-se de “uma alma virtuosa, um
modelo de paciencia, e nisto concordam as pessoas que ainda vivem e que a
conheceram”[10].
Quanto à
santidade da mulher cujo corpo incorrupto era, nesse ano de 1880, alvo da maior
curiosidade e manifestações religiosas, o referido autor limita-se a dizer: “Descrevemos
os factos apresentando-os conforme se deram e como testemunha ocular; e este
notável e raro acontecimento não pode de maneira alguma pôr-se em dúvida, pois
é bem manifesto e de pleno domínio público”.
Mas Martins
de Oliveira, por não as achar importantes ou por julgar que, omitindo-as, faria
com que a fogueira que ardia alta baixasse, não escreveu tudo quanto sabia,
alheando-se de relatar os problemas que, menos de um mês volvido sobre a
exumação do cadáver, rebentaram na Vila da Póvoa. Na verdade, ao apontar, como
acima se deixou escrito, que “o corpo manteve-se exposto ao longo de 28 dias,
sendo cada vez mais as pessoas que ali vinham por motivos religiosos ou por
simples curiosidade, já não sendo só o da vila e das freguesias circunvizinhas,
mas gente de chegava de terras mais longínquas”, omite o que se passou ao fim
desse espaço de tempo. O que na crónica de Martins de Oliveira ficou por dizer,
encontrámo-lo registado num livro de actas da irmandade de Nossa Senhora do
Amparo, sediada na mesma capela onde o corpo aparecera: em acta de três de
Junho de 1883 e referindo que o assunto fora já discutido em sessões de 15 de Agosto
de 1880 e 3 de Julho do ano seguinte, os irmãos dirigentes da mesma deixavam,
preto no branco, consignada a sua preocupação, não só pelo “avultado valor de
esmolas” desaparecido, como pela “subtracção do cadáver de Christina de
Bragança”[11]. Os
dirigentes da irmandade discutiram a possibilidade de levarem o assunto aos
tribunais, pedindo não só a devolução do dinheiro subtraído como a do próprio
cadáver, o qual, por despacho lavrado no dia da exumação, ficara sob a
responsabilidade da referida irmandade que o deveria manter na capela, a não
ser que fosse requerido por familiares ou herdeiros, o que não acontecera.
Não se sabe
quem levou da capela o dinheiro que, como mais à frente se verá, totalizava,
menos de um mês depois da exumação, a altíssima soma de 600 mil réis, para além
de várias peças de ouro, tendo tudo desaparecido numa só noite[12].
Quanto ao cadáver,
a história teve contornos macabros.
Utilíssima
fonte de rendimentos, desde logo houve quem dele se quisesse apoderar e
aproveitar. A Igreja terá pretendido levá-lo para Braga; os locais quiseram que
ficasse na terra. Como tivesse constado que iria ser removido para a cidade dos
arcebispos, desapareceu na noite de 29 de Outubro de 1880, diz-se que levado por
um proprietário do lugar de São Pedro chamado José António Vieira de Almeida,
que o escondeu em sua casa, numa empena do telhado [13].
Este José
António Vieira de Almeida não era um homem qualquer, um desqualificado ou um
mau-carácter, como quiseram já fazer dele. Tratava-se de um proprietário
agrícola de significativas posses, dono de uma grande propriedade no lugar de
São Pedro. Estava bem integrado nas elites da terra, e pouco tempo após estes
acontecimentos chegaria ao executivo municipal, desempenhando dois mandatos como
vice-presidente da câmara (1890, 1899). Foi, posteriormente, administrador do
concelho, vereador, e mais tarde e durante quase duas décadas tesoureiro do
município. Foi, para além disso, um dos fundadores da Tuna Povoense e, em 1897,
o primeiro signatário da petição para a fundação da Confraria do Pilar, à
frente de todos os homens influentes do concelho.
O próprio
Martins de Oliveira, autor da memória noticiosa que temos vindo a citar, era, à
época do desaparecimento do corpo e como já se disse, vereador da câmara
municipal. O que de algum modo pode explicar as razões do seu silêncio. Pelo
envolvimento de ambos (e provavelmente de outros cujos nomes ficaram na sombra),
fica a ideia de que a “subtracção” pode ter sido empreendida pelas elites locais,
de modo a impedir que o cadáver fosse levado para Braga.
O corpo
andou desaparecido e bem escondido durante bastante tempo. A acta já referida
da Irmandade da Senhora do Amparo era clara nesse aspecto: o desaparecimento
fora analisado numa reunião em Agosto de 1880, e mantinha-se em Julho de 1883,
quando os mesários voltaram ao assunto. Ou seja, andou desaparecido pelo menos
durante três anos.
Esteve
sempre em posse de José António Vieira de Almeida? Não esteve. Provavelmente
procurado pelas autoridades a mando da Igreja, o cadáver rodou de casa em casa.
Rosa da Silva Pereira, hoje com 75 anos de idade, disse-nos em entrevista que,
quando menina ouviu muitas vezes os seus avós contarem que “os de Braga queriam
levar o corpo, mas que as pessoas da vila o retiraram da capela durante a noite
para o esconderem, tendo andado por várias casas da vila. O meu avô chegou a
escondê-lo em sua casa durante alguns dias, metido sob um molho de chamiça”,
referiu ainda.
Braga não
conseguiu, pois, levar o corpo de Cristina de Bragança. O assunto deve ter
ficado encerrado através de um acordo entre as elites locais e a Igreja, actos
que em geral não ficam registados, pois em 1897 havia já sido construído na
capela do Horto um túmulo para o depositar.
Cadáver na capela do Horto
Em Novembro
de 1897, Martins de Oliveira afirma no seu artigo que, embora se tivessem
passado quase 54 anos desde que falecera, o cadáver de Cristina de Bragança
mantinha-se em perfeito estado de conservação, tal como quando foi exumado.
Sinal de que era pelo menos vigiado. Encontrava-se nessa data, como vimos,
inumado, dentro de um caixão, no interior da Capela do Horto onde fora
construída uma sepultura de cantaria, propositadamente para lhe servir de
jazigo.
Capela do Horto, onde foi construído um túmulo para receber os restos mortais de Cristina de Bragança |
O verdadeiro
estado de guerrilha à volta do corpo estava de momento adormecido, mas não
esquecido. Havia, aliás, nesse ano de 1897, quem se movimentasse no sentido de
tentar levar a Igreja à beatificação de Cristina de Bragança. Custódio José de
Araújo e Silva era um dos motores desse movimento. Martins de Oliveira, ao
concluir o seu artigo, opinava que isso “seria, na verdade, de grande
interesse, honra e zelo religioso para os povos desta vila e concelho”[14].
Mas os processos de beatificação conduzidos e aceites pela Igreja foram sempre
bem diferentes dos do povo crente, e o assunto morreu por aí. Temporariamente.
Alguns anos
depois, em 1907, seria Paixão Bastos, o grande cronista da Póvoa de Lanhoso,
que numa nota de rodapé inserida na sua monografia “No Coração do Minho: A
Póvoa de Lanhoso Histórica e Ilustrada” voltava a referir-se ao tema, afirmando
que no interior do santuário do Horto […] existe uma “campa em mármore com o
seguinte dístico: Aqui Jaz Christina de
Bragança”. Esta Cristina, explica o autor, era uma mulher virtuosa a quem a
crença do povo canonizou e beatificou sem licença de Roma, dado o seu cadáver
ter aparecido incorrupto ao fim de 36 anos de sepultura na velha capela da
Senhora do Amparo, já então substituída pela de Barbosa Castro com a mesma
devoção. Estabeleceu-se, reforça Paixão Bastos, a partir do achamento do corpo
incorrupto, uma grande corrente de crentes que afluíam à capela onde aparecera com
muitas e diversas ofertas as quais atingiram em poucos dias a soma de 600$000
réis, para além de muitos objectos em ouro (anéis, brincos, pulseiras, etc.),
tendo tudo isso desaparecido numa só noite sem deixar rasto. Não nos diz Paixão
Bastos quem poderá ter levado os bens doados, mas afirma, quanto ao corpo, que
“no povo era, e ainda é, chamada Santa Cristina, apesar da Egreja a não
reconhecer como tal”[15].
Festejos públicos
Para o povo
da Póvoa e apesar de a Igreja combater este tipo de práticas, Cristina da
Bragança manteve a auréola de santidade durante décadas. A sua sepultura na
capela do Horto continuou a ser visitada e feitas algumas dádivas em dinheiro e
ex-votos. A mesa da irmandade do Pilar, fundada em 1897, aproveitava os
donativos para as obras no conjunto sacro daquele monte, à época em muito mau
estado. E, aos poucos, começou a surgir a ideia da promoção de festejos em
honra de “Santa” Cristina, pensados por alguns dos elementos que compunham a
irmandade e apoiados quer pelo povo em geral, quer pela maior parte das
consideradas elites locais. O escritor e escrivão de direito José da Paixão
Bastos foi uma das figuras que mais apoiou a ideia, escrevendo regularmente nos
jornais textos de apoio à iniciativa. Não obstante o assunto vir a ser avaliado
há já alguns anos, a concretização da ideia só viria a efectivar-se em 1922,
tendo à frente da iniciativa um conjunto de jovens que, aos poucos, se vinha
impondo na sociedade local.
E foi assim
que nos dias 7, 8 e 9 de Outubro desse mesmo ano, as portas do templo do Horto
foram abertas de par em par. O túmulo encontrava-se destapado, coberto apenas por
um vidro que permitia ver o corpo ainda intacto de Cristina de Bragança.
Semanas antes, haviam sido impressas no Porto, a expensas do irmandade do
Pilar, alguns milhares de estampas com a imagem da “santa”.
A realização
dos festejos foi divulgada pelos jornais. Em todo o concelho se falava no
assunto e havia nos organizadores a certeza de que muitas pessoas se fariam presentes.
A entrada de esmolas estaria certamente nos horizontes da mesa que, face ao
estado calamitoso em que a conservação do monte se encontrava, queria
aproveitar para as aplicar em obras. Um dos principais objectivos era a
abertura de uma estrada de acesso ao alto do Pilar, cujo projecto se encontrava
pronto desde 1918 mas para cuja execução não existiam verbas. Vale a pena
notar-se que a peregrinação ao Pilar, integrando grupos de todas as paróquias
do arciprestado, se realizava desde 1897, seguida de uma festa no alto do
monte, mas que o acesso ao seu cume se fazia pelo caminho antigo, muito difícil
de trilar.
Sabedor dos
preparativos da festa sem que para tal fosse consultado, o pároco de Lanhoso juntou-se
ao arcipreste concelhio e, juntos, expuseram, como mandavam as leis canónicas,
o assunto à cúria bracarense. Apesar dos avisos transmitidos aos mesários do
Pilar pelo arcipreste de que a iniciativa não seria tolerada, a mesa, coadjuvada
por um grupo de jovens da vila, avançou para a realização.
Monte do Pilar, com a capela do Horto aos pés, onde se realizaram os festejos em Outubro de 1922 |
Em 19 de Outubro
de 1922, em matéria de primeira página, escrevia-se no “Jornal de Lanhoso” que
havia excedido as melhores espectativas “a importância dos festejos e a
concorrência de povo á campa onde se encontra o corpo de Santa Cristina, na
capela do Horto, subúrbios da Vila”[16].
O autor da breve notícia dizia, depois, que “apesar da má vontade d’alguém
contra a mesa e da propaganda feita contra a exposição da santa, foi grande,
extraordinariamente grande a concorrencia de crentes que visitou a campa da
mesma, deixando muitas esmolas, e algumas valiosas, em cumprimento de promessas
antigas e recentes”.
O jornal criticava
a má vontade dos que propagandearam contra a vontade da mesa da irmandade do
Pilar, responsável pela gestão da capela do Horto. Dizia o cronista que essa má
vontade devia até produzido efeitos contrários, já que a concorrência de povo
fora enorme, notando-se nos rostos dos presentes “grande satisfação, derivada,
sem dúvida, da fé e da crença que ali os trasia para verem o que há anos estava
oculto. O povo, o mais culto e o menos culto, deixou de lado as ameaças da Igreja”
para prestar homenagem à “santa” do Horto. E a notícia terminava em tom de
conselho: “O melhor é não tentar arrancar a crença desses corações, deixando
neles um vacuo dificil de preencher”. Recomendava depois aos “inimigos de Santa
Cristina” que se reconciliassem com os devotos, para bem da família católica,
pois “ao povo è que já não lhe arrancam a crença e quer queiram quer não, para
ele [povo], é Santa Cristina, com todas as honras”. Contra a força não há
resistência, termina o jornal por afirmar, dando os parabéns à mesa da
irmandade do Pilar e aconselhando-a a não desanimar no caminho encetado[17].
Mas, o provérbio
da força contra a resistência não se aplicou ao caso. A Igreja não estava, de
modo algum, disposta a permitir o abuso da população e principalmente da mesa
da irmandade que, tendo à cabeça algumas das mais importantes figuras das
elites sociopolíticas locais, queria dar continuidade aos festejos em anos
seguintes.
Em 21 de
Outubro de 1922, porém, D. Manuel Vieira de Matos fez publicar um decreto
através do qual lança um interdito à igreja da Senhora do Pilar e respectiva
irmandade[18]. No
documento, o arcebispo bracarense, invocando o código do direito canónico e
referindo ter “ordenado à mesa da Confraria de Nossa Senhora do Pilar, de S.
Tiago de Lanhoso, que se abstivesse de levar por diante o seu anunciado e
criminoso intento de expor à pública veneração dos fiéis, com demonstrações
festivas e em logar destinado ao culto público, isto é, na Capela do Horto,
onde jaz há tempos, o corpo de uma Serva de Deus que intitularam ‘Santa
Cristina de Bragança’ [….], havemos por bem sujeitar a Mesa da Confraria de
Nossa Senhora do Pilar […] à pena de Interdito […], e à mesma pêna sujeitamos a
capela ou igreja de Nossa Senhora do Pilar, com as demais capelas anexas,
incluindo a do Horto”.
A pena aplicada
pelo arcebispo assustou os responsáveis pela organização da festa. Nos termos
do direito canónico, o anátema do interdito sobre a confraria do Pilar atingia
também pessoalmente os seus membros, que se viram impedidos, a partir desse
dia, de tomar parte em qualquer cerimónia religiosa. Tratava-se de uma espécie
de “excomunhão” que os lesava pessoalmente.
E se, nos
primeiros meses ainda restou algum sentimento de revolta e de reacção ao
castigo imposto pelo arcebispo, com o passar do tempo a pena aplicada começou a
surtir efeito. Nenhum dos membros da confraria podia requerer à Igreja os seus
serviços, incluindo os do casamento. E isso começou a pesar na vida de alguns
dos jovens participantes na organização da festa que, querendo-o fazer, se
viram impedidos de casar.
A mesa da
irmandade era composta, à época, por João António Pereira Pires (juiz); Manuel
Bernardino Lopes de Macedo (secretário); Avelino de Araújo Ribeiro (tesoureiro);
João Albino de Carvalho Bastos (procurador); e pelos mordomos Gualdino da Silva
Lopes, Américo Rodrigues, Manuel Duarte da Silva, tendo estes como suplentes Constantino
Maria Gonçalves Fernandes, Jaime Victor Lopes de Macedo, António Joaquim de
Carvalho, Augusto Alves da Mota; António Joaquim Peixoto; Manuel Joaquim
Machado e Manuel José de Matos[19].
Alguns meses
após a ocorrência do episódio da exposição do cadáver, o pároco de Lanhoso
informou a cúria episcopal de que a mesa do Pilar havia mandado retirar o vidro
que cobria a sepultura, tendo-lhe aplicado de novo a tampa em granito que
escondia o cadáver. De seguida, os mesários João António Pereira Pires, Manuel
Bernardino Lopes de Macedo, Avelino de Araújo Ribeiro e João Albino de Carvalho
Bastos dirigiram ao prelado uma retratação e um pedido de desculpas por escrito,
na qual solicitavam o levantamento da pena.
Em face
disso, a 24 de Fevereiro de 1923[20]
o arcebispo D. Manuel Vieira de Matos, através de uma portaria levantou o
interdito lançado à irmandade e aos templos do monte do Pilar. Fê-lo, a
requerimento dos mesários, como ficou dito antes, os quais, segundo se pode ler
na referida portaria, “se confessam sinceramente arrependidos dos desvarios
praticados” e “pedem perdão para as suas faltas”, tendo já procedido ao
encerramento do túmulo onde se encontra o corpo de Cristina de Bragança.
Termina o arcebispo afirmando no documento esperar a conduta futura [dos
elementos] da mesa “redimerá plenamente as faltas do passado timbrando sempre
em ser e se mostrar dócil aos preceitos da autoridade eclesiástica e fiel
observadora das leis da Igreja”[21].
O assunto
ficou, desta vez, arrumado. A I República, na qual boa parte dos envolvidos se
reviam, participando dos órgãos políticos locais e das iniciativas para
comemorar a data de 5 de Outubro de 1910, começava a dar sinais de grande
fraqueza e, poucos anos depois, Portugal entrava na ditadura militar (1926) à
qual se seguiu a do Estado Novo (1933), através das quais o país se manteve
mergulhado numa mordaça durante quase cinco décadas. E as mordaças têm sempre
atemorizadores.
Apesar disso
e embora camufladamente, o povo da Póvoa continuou pelas décadas seguintes a
ter a maior devoção pela “Santa” Cristina de Bragança, o que é ainda possível
aferir junto de algumas pessoas mais idosos.
Há cerca de
vinte anos, a sepultura foi aberta na presença do pároco da Senhora do Amparo,
padre Manuel Magalhães dos Santos, e de parte dos mesário da Irmandade do
Pilar. Afirmam os que estiveram presentes que o corpo se encontrava já em muito
mau estado de conservação. A sepultura voltou a ser fechada, assim se mantendo
à mão direita de quem entra na capela do Senhor do Horto.
[1] Licenciado em
História pela Universidade do Minho. Doutorando em História Contemporânea,
bolseiro de investigação da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia.
[2] Para um melhor
conhecimento deste período consultar, entre outros: Serrão, Joel; Marques, A.
H. de Oliveira (dir.), “Nova História de Portugal. Portugal da Monarquia para a
República”, vol. XI, Lisboa, Editorial Presença, 1991.
[3] Cf. Ferreira,
Monsenhor J. Augusto, Notas Biográficas
do Ex.mo e Rev.mo Senhor D. Manoel Vieira de Mattos, Arcebispo Primaz,
Famalicão, Tip. Minerva de Cruz, Sousa & Barbosa, Lda., 1927.
[4] Cf. Oliveira,
Francisco Manuel Martins de, “Um caso raro”, in Jornal A Maria da Fonte nº 128, de 21 de Novembro de 1897, p. 1.
[5] Esta pequena
capela serviu durante muito tempo para nela cumprirem os preceitos regiliosos
os habitantes da Vila que pertenciam à freguesia de Lanhoso, cuja fronteira com
Fontarcada era o ribeiro Pontido (ver planta topográfica). Foi demolida quando
o “brasileiro” Barbosa Castro mandou construir, a expensas próprias, entre 1874
e 1882, a nova capela do Amparo, hoje igreja matriz da vila. Para a nova e
grande capela, propriedade privada do senhor da Casa da Botica, transitaram,
sob sua autorização, os mesmos serviços religiosos que até então pertenciam ao
templo mais pequeno. Também as irmandades existentes se mudaram para a nova
capela. Na década de 1930 a capela particular de Barbosa Castro foi retirada
aos seus herdeiros por decisão dos tribunais e transformada em matriz da Vila,
num processo sobre o qual pretendemos trabalhar num futuro próximo.
[6] Cf. Oliveira,
Francisco Manuel Martins de, “Um caso raro”, in Jornal A Maria da Fonte nº 128, de 21 de Novembro de 1897, p. 1.
[7] Para um melhor
conhecimento da questão dos expostos, consultar, entre outras, as obras: Fonte,
Teodoro Afonso da, No limiar da honra e
da pobreza. A infância desvalida e abandonada no Alto Minho (1698-1924),
tese de doutoramento policopiada, Repositório da Universidade do Minho, 2004;
Reis, Maria de Fátima, Os expostos em
Santarém. A acção social da Misericórdia (1691-1710), Lisboa, Edições
Cosmos, 2011; Rodrigues, Henrique, Expostos
no Alto Minho no século XIX e contextos migratórios, Porto, Ed. Autor,
2005.
[8] Cf. Arquivo
Distrital de Braga, livro de óbitos nº 3
(1802-1861), fl. 83. Assento de óbito: “Christina de Braganca cazada que
foi com Joze Antonio Gonsalves da Villa da Povoa desta freguezia de São Thiago
de Lanhoso falecêo da vida presente de hua maligna com todos os Sacramentos aos
desaceis dias do mês de Setembro de mil oitocentos quarenta equatro annos, e
foi sepultada na Capela de Nossa Senhora do Amparo da Povoa desta freguesia aos
desoito dias do dito mês e anno supra. Teve officio de corpo presente de trinta
e dous Padres com Missa cantada, e algumas quinze rezadas. E para constar fis
este que assigno. O R.tor João Mathias de Faria”. Por sobre o assento: (“S.tª
Christina”).
[9] Cf. Santos, Pe.
Manuel Magalhães dos, Monografia da Póvoa
de Lanhoso. Nossa Senhora do Amparo, Póvoa de Lanhoso, ed. Do Autor, 1990,
pp. 70-71.
[10] Cf. Oliveira,
Francisco Manuel Martins de, “Um caso raro”, in Jornal A Maria da Fonte nº 128,
de 21 de Novembro de 1897, p. 1.
[11] Cf. Santos, Pe.
Manuel Magalhães dos, Op. cit., pp.
70-71.
[12] Bastos, Paixão,
No Coração do Minho: A Póvoa de Lanhoso Histórica e Ilustrada, Braga, Imprensa
Henriquina a Vapor, 1907, p. 18.
[13] Santos, Pe.
Manuel Magalhães dos, Op. cit, p. 73.
[14] Idem, ibidem.
[15] Bastos, Paixão,
No Coração do Minho: A Póvoa de Lanhoso Histórica e Ilustrada, Braga, Imprensa
Henriquina a Vapor, 1907, p. 18.
[16] Cf. “Jornal de
Lanhoso”, nº 2, de 19 de Outubro de 1922, p. 1.
[17] Idem, ibidem.
[18] Cf. Ferreira,
Monsenhor J. Augusto, Op. cit, p.
347.
[19] Cf. Santos, Pe.
Manuel Magalhães dos, Op. cit., p.
256.
[20] Cf. Ferreira,
Monsenhor J. Augusto, Op. cit, p.
347.
[21] Cf. Santos, Pe.
Manuel Magalhães dos, Op. cit., pp.
259-260.