José Abílio Coelho[1]
É-nos hoje muito difícil fazer sequer uma
pequena ideia da reduzida quantidade de pessoas que, em finais da centúria de
setecentos, sabia ler ou escrever[2].
E no entanto passaram apenas pouco mais de dois séculos. A esta distância, muito
tempo para uma simples vida mas período muito curto na larga agenda da História,
mais difícil se nos torna entender que mesmo nos centros mais evoluídos da
Europa, a leitura de livros e periódicos se processasse muitas vezes em voz
alta, por parte de alguém que o soubesse fazer perante uma plateia que, podendo
ter, até, muitos bens de fortuna, permanecia iletrada. Philippe Ariès diz-nos
mesmo que, em França, só em finais do século XVIII começou a ganhar adeptos
entre os burgueses “a leitura na intimidade, que permitia uma reflexão
solitária”[3].
Mas mesmo para muitos daqueles que, já em pleno século XIX, frequentavam a escola,
ler em casa de forma solitária significava muitas vezes soletrar apenas: estar obrigados
a uma, duas, três leituras da mesma frase até conseguirem compreender a
mensagem que o texto comportava.
Nas grandes metrópoles
da Europa as escolas foram crescendo em significativo número e melhorados os processos
de instrução, especialmente após os “ventos de mudança” levantados pela
Revolução Francesa e pelas grandes alterações políticas que se lhe seguiram, com
as práticas da leitura e da escrita a evoluírem consistentemente.
Em Portugal, melhorariam também gradualmente mas apenas a partir da década de 1850. Essa
melhoria, no que respeita a escolas públicas, notou-se muito especialmente em cidades
como Lisboa, Porto e Coimbra, onde na centúria de oitocentos surgiu em força uma classe de letrados. Ao
contrário, no interior do país, essencialmente rural, estava já bem avançado o
último quartel do século XIX e era ainda muito reduzido o número de pessoas que
sabiam ler e escrever. Em 1867, de 757.000 crianças dos 7 aos 15 anos
registadas no todo nacional, havia ainda cerca de 600.000 que nunca tinham ido à
escola[4]. Mesmo Lisboa, em 1878 apresentava ainda uma taxa de analfabetismo que ia dos 70 e
aos 75 por cento, enquanto por exemplo no distrito de Braga a taxa de analfabetos rondava
pelos 85 por cento do total da população[5].
O concelho da Póvoa de
Lanhoso foi, até meados do último quartel do século XIX, uma dessas terras perdidas
num Portugal agreste onde tirando as cidades capitais de distrito, a esmagadora
maioria da população se dedicava à agricultura e vivia fechada à aprendizagem
das letras mais básicas.
A
Póvoa de Lanhoso no século XIX
Na sua tese de mestrado sobre o papel do
administrador do concelho José Joaquim Ferreira de Melo e Andrade na Revolução
da Maria da Fonte[6],
Paulo Alexandre Ribeiro Freitas publica um conjunto de tabelas que nos permitem
conhecer um pouco da realidade povoense até agora inédita: em 1836, para uma
população de 1.177 indivíduos residentes na freguesia de Fonte Arcada, a mais
desenvolvida das que compunham o concelho, apenas 75 eram eleitores. Destes, 4
eram advogados, 5 dedicavam-se a ofícios vários, havia 1 cirurgião e 1 juiz, 3
escrivães e outros tantos militares e padres, 2 eram professores, 2 vendeiros
ou negociantes, 1 pensereiro, sendo o maior número dos recenseados proprietários,
onze no total, e lavradores os restantes, em número de 39.
Na mesma data (1836) e
segundo o referido estudo, para um total de 8.156 habitantes existentes no
concelho, à época composto por apenas 14 freguesias[7],
existiam somente 255 eleitores. Menos de uma década volvida, para o mesmo
número de freguesias, os eleitores recenseados no concelho haviam subido para
356, ainda assim uma percentagem extremamente reduzida.
Convém dizer-se aqui que,
pelo articulado do código administrativo de 1837, o qual respeita o espírito da
lei em que se baseou o recenseamento das eleições do ano anterior, não eram eleitores
os que sabiam ler e escrever, mas os que pagavam determinado montante em
impostos[8].
Não andaremos porém muito longe da verdade se dissermos que a diferença entre o
número dos cidadãos que pagavam impostos e podiam por isso recensear-se,
tornando-se eleitores, e o dos que sabiam ler e escrever não era grande. A isto
acresce o facto de não nos ser difícil concluir que os que sabiam ler e
escrever se agrupavam em núcleos familiares restritos, o que limitava muito o
número de casas de residência onde havia interesse por livros e jornais.
Em 1907, na primeira
monografia histórica da Póvoa de Lanhoso intitulada No Coração do Minho, ainda José da Paixão Bastos, um dos maiores
nomes da nossa imprensa, escrevia: “Este concelho, composto por 28 freguesias,
é servido por 2 escolas mistas, 6 femininas e 15 masculinas, ou seja, [por] 23
escolas, [um] número suficiente (…). Mas as escolas são frequentadas por um limitado
número de alunos (…). Entre nós, à escola vai quem quer e quando quer, pois o
pai e a mãe, na sua feliz ignorância, dá como luxo liberdade ao seu descendente
(…). Por sua vez os encarregados de educação não querem contrariar a inocência
dos meninos, e assim vão crescendo envoltos nas trevas do analfabetismo, na
criminosa ignorância”[9].
O
primeiro jornal em 1885
Que público, ou melhor dizendo, que
número de leitores podia ter então à sua espera o jornal que, no dia 1 de Junho
de 1885, veio a público na Póvoa de Lanhoso e ao qual os fundadores chamaram “O
Castelo de Lanhoso”? Visto o reduzido número de leitores a que se destinava,
tudo parece indicar que à partida o jornal estaria condenado ao fracasso. Foi,
talvez por não acreditarem que a Póvoa de Lanhoso tivesse espaço para um
jornal, que os habitantes na terra permitiram que este primeiro periódico
nascesse a partir de Braga, cidade onde, no número 1 da Rua dos Granjinhos, possuía
sede.
Definindo-se como “hebdomadário político, literário e noticioso”,
teve como proprietário e fundador Narciso António Rebello da Silva, um homem de
Braga com ligações à Póvoa. O seu redactor-principal foi Manuel Cândido Loureiro
e o editor Zeferino de Azevedo Barroso. Publicando-se às quintas-feiras, a
assinatura para o reino custava 1.000 réis por ano, enquanto para o Brasil,
onde pretendia conquistar grande mercado junto da comunidade portuguesa que aí
vivia emigrada, 3.000 réis.
O facto de ter redacção
em Braga, onde, como se disse, também residia o seu proprietário, leva-nos a
pensar que não houve na Póvoa quem tivesse a coragem de se lançar num projecto
novo. Não obstante, os textos que o periódico comportava mostram-nos que quem
nele escrevia conhecia bem a terra. Vejamos, como simples exemplo, este
extracto do editorial publicado no seu número 3, datado de 18 de Junho de 1885:
“Infelizmente em Lanhoso, é força confessar, os diversos grupos dilaceram-se
mutuamente, caluniam-se sem guarda de simples conveniência, pensando, talvez,
preencher o fim sagrado da defesa dos interesses seus e alheios. Como corolário
de tal procedimento resulta o abandono completo dos poderes públicos desta
terra. O exemplo de tantos concelhos que prosperam pela união dos povos, não
traz a este a compreensão lúcida da força resultante da união, hoje distribuída
em tentativas loucas e se perdem no dize tu, direi eu, da política de
soalheiro, coradouro onde todos expõem a roupa suja do seu adversário”[10].
Para um jornal cuja
redacção se situava em Braga, não nos parece de todo mal feito o diagnóstico da
terra, onde a política e as benesses que dela resultavam eram, desde há várias
décadas, a grande preocupação das figuras dominantes.
Este primeiro jornal
povoense, apesar de ter nascido da iniciativa de alguém de fora, veio
revolucionar a terra. Estávamos no período maduro de uma nova concepção da
política nacional: o republicanismo começara a ganhar adeptos alguns anos antes,
mesmo nestas terras perdidas entre grandes moles graníticas, ao passo que a
Monarquia, que definhava já, dividia cada vez mais em dois grandes grupos
radicalmente opostos os que defendiam o sistema vigente.
Só a descoberta da enorme
força de um jornal, mesmo num concelho onde os leitores eram em número
reduzido, pode justificar que, ao fim de apenas meio ano, as elites emergentes
na Póvoa de Lanhoso resolvessem envolver-se na empresa de o tomar para si,
fundindo-o num projecto que, com outra designação, lhe dava continuidade.
Desconhecemos qual terá sido o processo, como se terá gerado a fusão, mas
sabemos que, no dia 3 de Janeiro de 1886, “O Castelo de Lanhoso” dava lugar a
um outro semanário, intitulado “A Maria da Fonte”. A primeira página do
derradeiro número de “O Castelo de Lanhoso” vinha impressa na segunda página do
número um de “A Maria da Fonte”, o que mostra que o nascimento deste esteve umbilicalmente
ligado ao desaparecimento daquele.
Cabeçalho do primeiro número de "A Maria da Fonte" (1886) |
Ao contrário do
“Castelo de Lanhoso”, “A Maria da Fonte” teve como proprietário um povoense, o
jovem comerciante Álvaro Ferreira Guimarães que viria, poucos anos volvidos, a
transformar-se numa das mais importantes figuras do meio, tendo sido presidente
da Câmara por várias vezes, administrador do concelho outras tantas, estando,
ainda, o seu nome ligado à história de quase todas as instituições que viram
luz nas primeiras quatro décadas do século XX, da Misericórdia à freguesia da
Póvoa de Lanhoso, da paróquia da Senhora do Amparo ao Sport Clube Maria da
Fonte, da Irmandade de Nossa Senhora do Pilar aos Bombeiros Voluntários.
Conhecedor do meio,
Álvaro Ferreira Guimarães faz-se rodear dos melhores e no cabeçalho de “A Maria
da Fonte” surgem, desde o primeiro número, dois nomes cuja importância nas
Letras concelhias é, ainda hoje, lembrado: como redactor-principal,
posiciona-se Azevedo Coutinho; e como responsável pela edição Francisco Manoel
Martins d’Oliveira.
Não vou debruçar-me
sobre a história do semanário “A Maria da Fonte”, sem dúvida o mais importante
jornal desta terra, tão importante que alcançou os 125 anos de idade que hoje
comemoramos e conheceu reis e presidentes, que sobreviveu a governos
democráticos e a ditaduras de longo curso, que assistiu à ascensão e queda de
vários regimes políticos, que sobreviveu a duas guerras mundiais, que foi
testemunha de actos de heroísmo e de longas e negras noites de medos e
traições, que nasceu num período de liberdade absoluta, atravessou tempos de
censura e perseguição e que viu renascer a liberdade na madrugada “inteira e
limpa” de uma quinta-feira de Abril, porque disso já aqui falou, e bem, o Dr.
Paulo Freitas.
Avanço, antes, para
1888, ano do nascimento de outro semanário na Póvoa de Lanhoso: “A Folha
Democrática”.
Ao analisarmos os
primeiros dois anos de vida de “A Maria da Fonte”, fica-nos a certeza de que,
embora por vezes titubeante, por força de distintas colaborações, o jornal começou
por abraçar ideais monárquicos, tendendo na sua simpatia para o Partido Progressista.
Mas como já se afirmou, a ideologia republicana começava a ganhar adeptos
também nesta terra. É esse ideal anti-monárquico que, reunindo apenas uma meia
dúzia de jovens, a maioria dos quais estudantes liceais com grande ligação à
terra, preside à fundação de “A Folha Democrática”, vinda à luz do dia a 2 de
Novembro de 1888. Foram seus principais obreiros os jovens Albino Bastos, que
para além de redactor assumiu a administração e a propriedade e Gonçalo Sampaio,
o redactor-principal. O editor era Henrique Zeferino.
Nas suas páginas,
escreveram-se textos de onde se colhem excertos como este: “Há um bando de
velhacos que andam por aí a explorar a boa-fé das classes menos ilustradas,
pregando-lhes coisas horrorosas a respeito da República (…). É necessário
correr com estes malandros, é necessário estabelecer um governo económico, é
necessário implantar a República em Portugal”[11].
Tal como acontecia com
o “A Maria da Fonte”, “A Folha Democrática” tinha redacção na Praça Municipal,
e a assinatura anual custava também 1.000 réis anuais para o território
nacional, e 2.000 reis fortes para o Brasil, exigindo o pagamento adiantado da
assinatura.
Assumidamente
republicano, este semanário foi bem recebido na terra onde, quer a família Carvalho
Bastos, quer a família Ferreira Sampaio, tinham pergaminhos e estatuto social e
político. Mas, como veremos no desenrolar desta comunicação, nenhum dos jornais
surgidos na Póvoa de Lanhoso após o aparecimento de “A Maria da Fonte” irá ter
a longa vida que caracteriza este último.
“A Folha Democrática”
desapareceu com menos de um ano de publicação, em Setembro de 1889[12].
Albino Bastos continuará fiel ao ideal republicano, colaborando ou assumindo
responsabilidades administrativas noutros projectos jornalístico, nomeadamente
no “A Maria da Fonte”, até partir para o Brasil, em 1914, onde se formou em direito
e foi advogado. Mas Gonçalo António Ferreira Sampaio, o editorialista que tão
fervorosamente defendia a implantação de uma República em Portugal iria, em
breve, mudar radicalmente o seu percurso. Depois de partir para o Porto, onde
se fez professor universitário, tornou-se, ainda na vigência da Monarquia,
apoiante do Partido Regenerador Liberal e admirador de João Franco. Já em plena
República, aquando do episódio da “Monarquia do Norte” no início do ano de 1919,
viria mesmo a participar em actividades violentas em defesa do regime
monárquico e a ser detido depois do fracasso do movimento de Paiva Couceiro.
Voltemos, contudo, um
pouco atrás.
Desaparecida em Setembro
de 1889 “A Folha Democrática”, surgiu, em 16 de Agosto de 1900, “A Gazeta de
Lanhoso”. Sobre este jornal, sabemos apenas a data da sua fundação, por
informação que nos foi deixada por Paixão Bastos em “No Coração do Minho”. O
mais provável é que, a exemplo da “Folha Democrática” tenha sido de publicação
efémera.
Mais duradoira foi a
vida de outro semanário nascido na Póvoa de Lanhoso a 4 de Dezembro de 1900.
Definindo-se como “semanário independente”, era dirigido por Luiz Valle Rego,
proprietário de uma farmácia na vila e casado com uma filha do benemérito Manuel
Joaquim Barbosa e Castro, da Casa da Botica. Este jornal, intitulado “O Povo de
Lanhoso”, ainda se publicava em 1910, tendo como director e proprietário o
mesmo Luiz Valle Rego. Mas é certo que entre a fundação, em 1900, e o exemplar
que se conhece datado de 2 de Julho de 1910, tenha estado auto-suspenso por
tempo indeterminado. Justifica-o o facto de ter voltado a publicar-se como
número 1 – Ano 1º, em 1910. Esta segunda série chegou ao nº 41, que se publicou
em 8 de Julho de 1901[13].
“O Povo de Lanhoso” é
mais um exemplo de “arma de arremesso” que alguns jornais povoenses assumiram
na vida da terra. Para além da publicidade, dedicava, nos números que
conseguimos consultar, longuíssimos artigos de fundo ao combate político e às questões
comerciais. Entre os principais alvos do editorialista e director, contavam-se
os então responsáveis por “A Maria da Fonte”, o advogado Alfredo Ribeiro e o
comerciante Cyrilo Ferreira Gonçalves da Cruz. Como curiosidade, vejamos apenas
este parágrafo de um texto assinado por Luiz Valle Rego e publicado na página 2
do número 41: “Mestre Alfredo, redactor da ‘Maria da Fonte’ e advogado, sempre
pronto a defender-se connosco em questões várias, desta vez escreveu que o
remendão Cyrilo assinou uma queixa para juízo dizendo que este jornal não se
publicando alguns números, não era periódico e não podia publicar anúncios.
Vejam a ignorância chapada! Em que lei se fundamentam os dois sócios da mamadeira
‘Maria da Fonte’? Sentiram a teta vazia e, querendo dar vigor à velha de quem
fugia a seiva, vêm para juízo julgando que a lei é letra morta e que os
digníssimos magistrados podiam ser ludibriados com lamúrias, como o foram os
jurados na vergonhosa questão dos arados, em que o sogro e o compadre, que não
sabem arrumar com a biqueira da bota quem assim os ilude o obriga a fazer
ridícula figura. Enganaram-se os dois sócios. Pela segunda vez apanhou mestre
Alfredo a vergastada na sua inveja (…) Isto arde no Alfredo que nem aguarraz
onde as costas mudam de nome…”[14].
Este breve excerto de
um texto maior serve apenas para aqui se ilustrarem “os amores” que, há cem
anos, opunham alguns dos agentes da imprensa local e o tipo de ataques, de
linguajar brejeiro, que se produziam. Podemos imaginar, aliás, o impacto que um
texto destes terá tido numa terra onde, já em plena I República, os visados
eram figuras de grande relevo político e o autor da matéria citada um defensor
da deposta monarquia. Não nos é possível saber que influência pode ter assumido
para o encerramento do jornal a publicação deste texto, mas a verdade é que o
número em que tal artigo saiu a público foi o último da vida de “O Povo de
Lanhoso”.
Maria
da Fonte: título único durante cinco anos
Encerrado “O Povo de Lanhoso” em 1911,
passou “A Maria da Fonte” ao estatuto de título único em publicação no
concelho, situação que manteve até 7 de Dezembro de 1916.
Nesta data, tendo como
editor e proprietário António Costa, um tipógrafo de Vieira do Minho, e como
director José da Paixão Bastos, surgiu na praça outro semanário: Intitulava-se “A
Póvoa de Lanhoso” e, no seu primeiro editorial, afirmava orientar-se “pela
bússola da verdade, da Justiça e do Direito” e ser defensor “da Paz, da
Liberdade, do Trabalho como base da sociedade, da Instrução, da Luz e do
Progresso como guia do Povo na estrada do Bem”[15].
José da Paixão Bastos, o
primeiro director deste semanário e figura maior das letras e do jornalismo povoense
até à sua morte em 1947[16],
manteve-se no comando do periódico por pouco tempo. Meio ano após a fundação,
Paixão afastou-se e a direcção passou a ser desempenhada por Alberto César
Leite. A partir do número 139, o cargo é assumido Custódio Manuel da Silva, um
homem que virá a ter estreitas ligações ao padre José António Dias - o qual
muitos anos depois assumirá a propriedade duma segunda série deste periódico.
Paixão Bastos foi fundador e director de vários jornais |
Não avancemos, porém,
sem deixarmos claro que, a exemplo de boa parte dos seus antecessores, esta
primeira série do semanário “A Póvoa de Lanhoso” não resistiu à maceração do
tempo, aos efeitos devastadores da I Guerra Mundial na economia portuguesa e à
instabilidade política que, de Lisboa, se estendia a todo o país: cerca de três
anos após a sua fundação “A Póvoa de Lanhoso” encerrou portas, deixando de novo
“A Maria da Fonte” como único jornal do concelho.
Até 12 de Outubro de
1922. Teimando sempre em ter uma intervenção pública, Paixão Bastos uniu-se
desta vez a Alberto César Leite para, juntos, fundarem nesse ano outro
semanário a que deram título de “Jornal de Lanhoso”. A redacção deste
hebdomadário funcionou, tal como acontecera com o antecessor “A Póvoa de
Lanhoso”, na Rua D. Elvira Câmara Lopes, no rés-do-chão da casa onde habitava o
director Paixão Bastos. Mais uma vez, “é a defesa dos interesses deste formoso
terrão chamado Póvoa de Lanhoso” a animar os fundadores, que reconheciam ser
“árdua, escabrosa e esgotante” a missão a que se propõem, embora se afirmassem
animados a prosseguir com o projecto e a algo fazerem pela terra desde que conseguissem
“arredar obstáculos, desprezar doestos, sacudir tibiezas e repelir insinuações
malévolas”, bem como a colocar de lado “lutas partidárias e agressivas”[17].
Mas também o “Jornal de
Lanhoso” teria existência breve, vindo a desaparecer pouco mais de dois anos volvidos
sobre a publicação do primeiro número.
As
ditaduras, um novo projecto e as guerras locam
A partir de 1924, com o desaparecimento
do “Jornal de Lanhoso”, “A Maria da Fonte” voltava à posição de jornal único no
concelho. Assumidamente republicano desde a implantação da República, em
Outubro de 1910, e muito especialmente após ter sido adquirido por João
Carvalho, que chegou à terra como tipógrafo e viria a afirmar-se como “a alma”
do semanário depois de o ter comprado em 1920, “A Maria da Fonte” manteve-se
fiel aos seus princípios de simpatia para com a velha máxima dos
revolucionários franceses de 1789: “Igualdade, Liberdade, Fraternidade”. E,
assente neste princípio, atravessou o definhar da I República, com as suas
crises políticas, os seus quase trinta governos em menos de oito anos e as
consequentes mudanças no poder político local.
Era pois “A Maria da
Fonte” jornal único no concelho quando, em 28 de Maio de 1926, dando o seu
braço fardado no apoio ao descontentamento popular que via o país afogar-se
numa crise económica, política e social, o general Gomes da Costa partiu de
Braga para instituir uma Ditadura Militar. Numa página interior, o semanário
povoense limitou-se a estampar pequeníssima nota, noticiando a revolta, mas sem
dar opinião. Preferiu publicar, no número de 6 de Junho de 1926, um texto
crítico aos homens fortes do novo regime, da autoria de Raul Proença. Ficava
claro que a “Maria da Fonte” se mantinha fiel aos seus princípios demo-liberais,
quatro décadas depois de ter sido fundado.
João Carvalho, "alma" maior do semanário "Maria da Fonte" |
Os anos que se seguiram
foram de estrema dificuldade. Portugal estava mergulhado na miséria económica, dependente
de empréstimos externos; o país vivia mergulhado na pequena política e os
cidadãos desejavam mudanças radicais, exaurido que estava o tempo útil da I
República. E começava a ficar claro que os militares que tinham imposto a
Ditadura não seriam capazes de concluir com êxito a mudança a que se haviam
proposto. Até que, após várias tentativas mal sucedidas para resolver o
problema maior do país, o desequilíbrio financeiro que empurrava o povo para a
fome e o país para uma sucessivas reacções populares, os homens fortes da
Ditadura Militar descobriram em Coimbra um jovem professor universitário,
especialista em finanças chamado António de Oliveira Salazar. Foi este homem
que, chamado ao governo como ministro das finanças, disse no seu discurso de
posse realizada a 27 de Abril de 1928: “Sei muito bem o que quero e para onde
vou”. E sabia.
Começou por colocar as
finanças do país em ordem, com o sacrifício geral, e acabou por estabelecer um
regime ditatorial e repressor que o manteve no poder até que uma queda, no forte
de Santo António do Estoril, quando se abeirava já dos 80 anos, o diminuiu
física e mentalmente, primeiro, acabando por o levar à morte em 1970 sem jamais
se aperceber de que já não era o ditador de Portugal.
Quando Oliveira Salazar,
depois de ter sido ministro das finanças por duas vezes, foi investido
presidente do conselho de ministros, em 1932, a “Maria da Fonte”, ficou expectante.
Nessa altura o país
ainda sonhava que, resolvidos os problemas financeiros e a crise social que
enterrara a I República, o professor de Coimbra regressasse à sua cátedra na
universidade e permitisse ao país voltar ao “Sol” da democracia. Mas Oliveira Salazar,
ao contrário daquilo que sempre dissera e continuou a afirmar durante toda a
sua longa permanência na presidência do Conselho, gostava do poder.
É do insuspeito Manuel
Braga da Cruz a tese de que Salazar se tinha preparado, ou tinha sido preparado
pela Igreja, desde os tempos de estudante em Coimbra, para governar Portugal
com mão de ferro, pondo fim àquilo que o grupo que frequentava na cidade do
Mondego considerava “os desmandos a que o Liberalismo e a República haviam
levado o País”. Com Oliveira Salazar, tinham-se preparado, ou tinham sido
preparados, um conjunto de outros jovens cuja missão seria a de travarem o
anticlericalismo reinante. Muitos desses jovens (de entre os quais se
destacaram Salazar e Gonçalves Cerejeira), tornaram-se figuras de relevo
nacional. A outros coube a missão de encetarem um trabalho de formigas ao nível
regional e local. À Póvoa de Lanhoso chegou, ainda antes dos militares terem
tomado o poder em Maio de 1926 um sacerdote que viria, com o passar do tempo, a
tomar todos os poderes, até se transformar, ele próprio, em “o poder”.
Foi sob orientação
desse sacerdote, padre José António Dias, que na Primavera de 1929, cerca de
uma década depois de ter sido extinta a primeira série, ressurgiu na praça
povoense o semanário “A Póvoa de Lanhoso”. Esta segunda série teve por motores
um grupo de homens umbilicalmente ligados à Igreja, que ficaram conhecidos na terra
como “padre do Amparo”, aos quais se aliou o apoio de alguns leigos.
Assumindo, desde o
princípio, simpatias pelos novos ideais políticos já burilados por Oliveira
Salazar e que viriam a resultar na fundação do Estado Novo no início da década
de 1930, o jornal “A Póvoa de Lanhoso” tornou-se na terra o seu grande
defensor. A partir desta altura, se ao “A Maria da Fonte”, sob a gestão de João
Carvalho e reunindo à sua volta um importante grupo de simpatizantes dos ideais
de esquerda, ainda restava uma ténue perspectiva de que Salazar podia ser o
homem de que Portugal precisava, a verdade é que, em escassos meses passou da dúvida
à certeza de que assim não seria. Desde cedo, por isso assumiu definitivamente
o papel de “voz da oposição”.
Em Dezembro de 1929
surgiu na praça pública, através das páginas de “A Maria da Fonte”, a primeira
grande polémica entre os dois jornais da vila: Custódio António da Silva e Adelino
Pinto Bastos, médicos do Hospital António Lopes, faziam graves acusações à mesa
administrativa da Misericórdia recem-criada, afirmando que esta pagava um
altíssimo salário a outro médico, o Dr. Adriano Vieira Martins. Na semana seguinte,
era nas páginas de “A Póvoa de Lanhoso” que a resposta se publicava, mais
contundente ainda que o texto de acusação. A verdadeira guerra ideológica
nascida entre ambos os jornais não parou mais.
Foi terrível para “A
Maria da Fonte” a censura imposta durante a Ditadura Militar e mais tarde pelo
Estado Novo. Perseguições, prisões e suspensões temporárias do título marcaram os
quase quarenta anos de Salazarismo[18].
Nas décadas de
cinquenta e sessenta do século XX, o analfabetismo profundo que marcara o
aparecimento da imprensa na Póvoa de Lanhoso, oitenta anos antes, começava a
esvair-se. A emigração em força, especialmente para França, que teve início no
final dos anos de 1950 e cresceu ao longo de toda a década seguinte, levando
àquele país quase um milhão de portugueses, tornou-se um excelente mercado para
“A Maria da Fonte”. Mas, a falta de assinantes e leitores que marcara época
recuada, foi substituída durante o Estado Novo pela falta de Liberdade.
E
enfim, a Democracia
No dia 25 de Abril de Abril de 1974, a
restauração da Democracia em Portugal encontrou ainda separados pela antipatia os
dois jornais que existiam na Póvoa de Lanhoso. Mas as disputas, existindo, nada
tinham já a ver com os confrontos que marcaram as décadas de 1930 a 1960.
O “Póvoa de Lanhoso”
viria a desaparecer em 1990.
Após a Revolução dos
Cravos, livre do nó da censura, o panorama da imprensa povoense alterou-se
radicalmente nascendo, consecutivamente, o “Jornal da Póvoa” (1 de Janeiro de
1981), o “Ecos da Senhora do Porto” (Outubro de 1985), o “Tribuna de Lanhoso”
(8 de Janeiro de 1992), o “Terras de Lanhoso” (6 de Outubro de 1996) e “O
Castelo de Lanhoso” (22 de janeiro de 1999)[19].
Hoje, 126 anos depois
do aparecimento do primeiro jornal povoense mantêm-se em circulação apenas dois
jornais: o “Terras de Lanhoso”, nascido há 14 anos, e o “Maria da Fonte”, que
conta 125 de história.
Não queria terminar
esta breve exposição sobre a Imprensa Povoense sem aqui deixar uma palavra em
honra das muitas centenas de homens que, ao longo destes 126 anos, deram tanto
de si para que a história do concelho ficasse “rascunhada” nas páginas dos
periódicos de que falámos. Recordá-los a todos seria, porém, impossível. Mas,
pelo seu 125º aniversário, gostaria de homenagear o jornal “Maria da Fonte” na
memória do seu primeiro director, Azevedo Coutinho, que, para além de grande
jornalista, foi também autor de uma interessante “História da Revolução da
Maria da Fonte”[20] e
de alguns outros trabalhos de grande interesse histórico e literário.
De entre os trabalhos
de Azevedo Coutinho, permitam que aqui leia um trecho do seu poema “O Trabalho”[21],
escrito propositadamente para ser declamado pelo autor num sarau em benefício
dos operário sem trabalho que teve lugar no dia 24 de Abril de 1892 no Teatro S.
Geraldo em Braga, poema que, alterada a data em que foi dado a público, continua
perfeitamente actual:
“A falta
de trabalho é mãe do latrocínio.
A fome
leva ao roubo, e este ao assassínio.
O potente
motor das grandes convulsões
Que fazem
abalar os povos e nações,
É quase
sempre a fome – o temeroso espectro
Que faz
ruir um trono e faz quebrar um ceptro.
(…)
A lei da
criação, a lei universal
Resume-se
em Trabalho – o Bem oposto ao Mal!
A esmola
é um alívio, e pode ser um vício;
O
trabalho é virtude, um santo sacrifício.
É luz que
espanta a treva, é luz no lupanar
É luz que
regenera, é luz a cintilar!
Depressa
foge o vício à vista do trabalho
Depressa
o lavrador vai manejando o malho;
Enquanto
pelo ar a voz da cotovia
Ressoa,
cristalina, ao despontar do dia!
Dai
trabalho ao artista, ao servo, ao proletário
Que assim
lhes dareis vida, e pão no seu armário,
Deixando
reflorir nos meigos corações
As rosas
da virtude, as gratas afeições”.
[1] Licenciado em
História e doutorando em História Contemporânea pela Universidade do Minho.
Bolseiro a FCT e membro do CITCEM/UM.
[2] Esta comunicação
foi proferida em Janeiro de 2011, na primeira sessão comemorativa do 125º
aniversário do semanário local da Póvoa de Lanhoso “A Maria da Fonte”. Os
outros dois palestrantes foram o Dr. Paulo Alexandre Ribeiro Freitas, director
da Biblioteca Municipal/Casa da Botica, e a Doutora Felisbela Lopes, professora
da Universidade do Minho. A informação contida neste texto que não esteja
devidamente referenciada em notas de rodapé consta do livro: Coelho, José
Abílio, Rascunhos da História.
Apontamentos sobre a imprensa periódica na Póvoa de Lanhoso, Póvoa de
Lanhoso, ed. Do Autor, 1994.
[3] Chartier, Roger
– As Práticas da Escrita, in “História da Vida Privada: Do Renascimento ao
Século das Luzes”, Vol. 3, Lisboa, Edições Afrontamento, 1990, pp.113-164.
[4] ALVES, Luís
Alberto Marques – O Ensino, in “Nova História de Portugal” (Dir. Joel Serrão e
A. H. de Oliveira Marques), Vol. X (Portugal e a Regeneração), Lisboa,
Editorial Presença, 2004, p. 311.
[5] ALVES, Luís
Alberto Marques – o. c., p. 313.
[6] FREITAS, Paulo
Alexandre Ribeiro – O Liberalismo na Póvoa de Lanhoso. O Administrador do
Concelho na Revolução da Maria da Fonte, tese de mestrado apresentada à
Universidade do Minho, 2010, p. 50.
[7] O concelho da
Póvoa de Lanhoso é hoje composto por 29 freguesias.
[8]. No seu artigo
24 do Capítulo III, afirma-se que” “podem votar na eleição das Camara
Municipais os Cidadãos Portugueses, ou Extrangeiros naturalizados maiores de
vinte e cinco anos, com domicílio de um ano no Cocelho, e que estando no goso
dos seus direitos Políticos e Civis tiverem uma renda annual de cem mil réis,
proveniente de bens de raiz, industria, emprego, ou commercio”. Cf. Código Administrativo Portuguez, Lisboa,
Imprensa da Rua de S. Julião, 1837, p. 8.
[9] BASTOS, Paixão –
No Coração do Minho: A Póvoa de Lanhoso Histórica e Ilustrada, Braga,
Tipografia Henriquina a Valor, 1907, p. 98.
[10] O Castelo de
Lanhoso, nº 3, de 18 de Junho de 1885, p. 1
[11] “A Folha
Democrática”, nº 4, de 23 de Fevereiro de 1888, p. 1.
[12] Oliveira, A.
Lopes de, Imprensa Bracarense, Braga,
Livraria Pax, 1976, p.101.
[13] OLIVEIRA, A.
Lopes de – O. C., p.151.
[14] O Povo de
Lanhoso, nº 42, de 8 de Julho de 1911, p. 2.
[15] A Póvoa de
Lanhoso, nº 1, de 7 de Dezembro de 1916, p. 1
[16] Cf. Coelho, José
Abílio, Paixão Bastos (1870-1947). Vida e
obra de um escritor de província, Póvoa de Lanhoso, ed. Terras de Lanhoso,
2007
[17] COELHO, José
Abílio, O. c., p. 68.
[18]
Poderá parecer estranho que por vezes o semanário apareça citado como “Maria da
Fonte” e outras como “A Maria da Fonte”. Ao longo da sua história, este foi um
subterfúgio utilizado por vários dos seus administradores. Quando o “Maria da
Fonte” era temporariamente suspenso, o jornal apresentava-se nas bancas na
semana ou semanas seguintes como “A Maria da Fonte”. Quando o tempo de castigo
ou suspensão terminava, voltava ao título inicial. Esta situação repetiu-se por
várias vezes. Vejamos apenas um exemplo: em 4 de Novembro de 1928 o jornal saía
com o título “A Maria da Fonte”, sendo seu proprietário João Carvalho e seu
director e editor o Dr. Manuel Alexandre Pereira. Em 9 de Dezembro de 1928, o
jornal faz publicar uma breve nota onde se lê que tendo o “A Maria da Fonte”
sido suspenso por trinta dias, saía a público o novo semanário “Maria da
Fonte”. Na edição de 29 do mesmo mês e ano, volta ao título anterior, inserindo
outra nota onde explica: “Reaparece hoje o ‘A Maria da Fonte”. Uma terra como a
Póvoa de Lanhoso, onde este jornal pontifica há 36 anos, humilde mas sincera e
honradamente, não deve nem pode prescindir dum jornal que trate
desinteressadamente de a engrandecer, procurando fazer dela maior. Uma terra,
por pequena que seja, que não alimente um jornal para defender as suas
tradições, os seus interesses comerciais, industriais e agrícolas, é uma terra
morta”. Mudara entretanto de director, que é agora Adelino Pinto Bastos.O
proprietário continua a ser João Carvalho. A 6 de Janeiro de 1929, mantendo o
título de “A Maria da Fonte” volta ao cabeçalho como director o Dr. Manuel
Alexandre Pereira. A mudança de director ocorre também muitas vezes por razões
políticas, quando este é castigado e impedido de dirigir o jornal por
determinado tempo. A situação agravar-se-ia nas décadas de 1930-1970, pois a
nomeação dos directores obedecia a aprovação superior.
[19] A data de
fundação dos primeiros foi retirada da nossa monografia identificada na nota
número dois deste texto. A data da fundação do “Castelo de Lanhoso” foi colhida
no site da Biblioteca Nacional de Portugal através do endereço: http://catalogo.bnportugal.pt/ipac20/ipac.jsp?session=12N01J66163L2.6679&profile=bn&uri=link=3100018~!1047556~!3100024~!3100022&aspect=basic_search&menu=search&ri=1&source=~!bnp&term=Fernandes%2C+Armando&index=AUTHOR
[consulta em 11 de Janeiro de 2011].
[20] Coutinho,
Azevedo, História da revolução da Maria
da Fonte, Póvoa de Lanhoso, Editorial Ave Rara, 1997.
[21] Coutinho,
Azevedo, O Trabalho. Poesia recitada pelo autor no theatro S. Geraldo, em
Braga, no Sarau realizado a 24 d’Abril de 1892, em benefício dos operários sem
trabalho, Braga, Imprensa Gratidão, 1892