terça-feira, 1 de maio de 2012

Paços do Concelho da Póvoa de Lanhoso: Um presente com passado (Parte 1)


Alçado principal do edifício dos Paços do Concelho da Póvoa de Lanhoso - projecto de obras de 1872


José Abílio Coelho*
 

1. Explicação

Este é um trabalho várias vezes adiado, o que talvez não valorize o resultado final. Uma primeira versão, com um reduzido texto explicativo, esteve para ser impressa num álbum, contendo vasta ilustração, aquando das obras de restauro de edifício dos Paços do Concelho da Póvoa de Lanhoso, no ano de 2002. A Câmara Municipal presidida então pelo Dr. João Tinoco de Faria, pensou editar para “memória futura” uma pequena brochura no dia da inauguração desses melhoramentos, pelo que o meu amigo e então responsável pelo património autárquico, Dr. Lúcio Pinto, me pediu que escrevesse um breve texto e preparasse a edição, que seria custeada pelo município[1].
Iniciei então a pesquisa tendente à sua redacção. Fui reunindo o material indispensável e comecei a dar corpo ao texto. Não obstante a vontade que tinha na elaboração do trabalho, o tempo que mediou entre o desafio para o escrever e o dia em que deveria estar pronto fez-se pouco. Algumas semanas antes da data prevista para que o trabalho estivesse concluído e impresso havia ainda várias fontes para consultar, nomeadamente parte dos antigos jornais da terra, sem dúvida mananciais de informação sobre o desenvolvimento das obras e cujas colecções se não encontravam à mão, mas em locais algo distantes do sítio onde me encontrava como a Biblioteca Municipal do Porto e a Biblioteca Nacional de Lisboa. Era ainda necessário consultar outros arquivos, como o do governo civil e o distrital de Braga, e ler com cuidado as actas da câmara da Póvoa, onde sabia existir bastante informação para o pleno conhecimento da matéria. Quero com isto dizer que, em consciência, não me foi possível elaborar um trabalho que, achava eu, como ainda acho, a história do edifício merecia porque, fazer história, não é mostrar uma máscara e deixar escondidas as verdadeiras feições de um rosto.
Por isso não quis arriscar escrever um texto “de ocasião”, deixando por analisar outra valiosa informação para a história do domus municipalis povoense. Preferi justificar-me junto dos amigos que me tinham colocado o desafio, prometendo utilizar parte da informação, que então possuía, num artigo de várias páginas, o qual viria a ser editado no Boletim Municipal da Póvoa de Lanhoso[2], no qual contei a história do edifício de uma forma sucinta. Sempre, não obstante, com a ideia de um dia a poder desenvolver.
Anos depois, remexendo os meus papéis, encontrei o trabalho já feito, reli-o e, encontrando-lhe embora as mesmas omissões que me levaram a não o publicar antes, pensei que a informação nele contida podia ser um primeiro passo para que alguém, querendo, pudesse desenvolvê-lo e completá-lo. Que direito tinha eu, pensei, de deixar perder a matéria recolhida, sabendo que ela poderia merecer o interesse de alguns jovens que a quisessem trabalhar e, mais que isso, deitar fora um conjunto de informações que, não sendo publicadas, poderiam perder-se para sempre? Nessa ocasião surgiu-me a ideia de editar uma brochura tosca, sem imagens, barata, talvez mesmo policopiada — porque paga do meu bolso — deixando assim salvaguardado o trabalho já feito como “candeia que vai à frente”, na esperança de que outros completassem o caminho por mim encetado. E assim comecei a rever vagarosamente o texto, não para lhe acrescentar algo mas para, utilizando o ensinamento daqueles que são mestres no ofício da escrita, lhe cortar as pontas dos ramos que estivessem a mais, dando ao conjunto alguma harmonia.
Mas a revisão encetada obrigou-me a uma redefinição do trabalho e a insatisfação do historiador veio ao de cima: a releitura de alguns episódios já conhecidos deixaram-me curioso sobre como se tinham realmente iniciado, como se desenvolveram e como tinham sido resolvidos. É que o processo que levou à construção do novo edifício dos Paços do Concelho da Póvoa de Lanhoso, sobre o qual pretendia debruçar-me, teve início no definhar da Primeira República e estendeu-se por várias décadas, ficando a obra concluída em pleno fulgor do Estado Novo, na década de 1950.
Por ele, ou utilizando-o como arma de confrontos vários, envolveram-se as elites locais em batalhas de grandes significado social e político, que opuseram velhos republicanos aos cultores da nova ordem trazida pelo Estado Novo e, dentre estes últimos, homens que, afirmando-se apoiantes de Salazar e simpatizantes da “sua obra”, dele, edifício, fizeram também campo das mais violentas batalhas. Por isso os projectos foram várias vezes alterados ou substituídos consoante se sucediam as câmara ou as comissões administrativas do município até por, a partir de 1927, terem os camaristas a ideia de que quem fosse capaz de utilizar o dinheiro do legado de António Lopes cumprindo a sua vontade expressa em testamento, iria ficar na história da terra. A construção do novo edifício serviu, por fim, como instrumento de propaganda do Regime então vigente, tal como muitas outras obras que entre os finais da década de trinta e a década de cinquenta do século XX foram executadas nas terras de Lanhoso. Quis por isso mesmo averiguar as razões que gerarem amores e ódios, afectos e desafectos, avanços e recuos das decisões e dos actos destas personagens de marcaram uma época.
A informação que fui continuando a reunir levou a que adiasse a publicação do opúsculo, de forma a no futuro poder apresentar um trabalho mais consistente. Não o consegui ainda, pois continua a chegar-me às mãos informação que me parece imprescindível para realizar um trabalho de algum mérito.
Por isso, o breve texto que agora se publica neste blogue será revisto e terá continuação. Este é apenas um breve resumo dos antecedentes do actual edifício dos Paços do Concelho da Póvoa de Lanhoso, que constituirá uma das partes do livro que quando a oportunidade surgir, se trará a público. Não quero com isto dizer que quando a publicação acontecer tudo estará escrito sobre a casa da câmara. Mal está o historiador que pensa que qualquer trabalho publicado equivale a um assunto arrumado: há sempre novos dados que emergem, novas fontes que se encontram, outra informação que vai surgindo. Há novas concepções e contextualizações que se experimentam. Por isso esta não é, nem de perto nem de longe, a história do edifício dos Paços do Concelho da Póvoa de Lanhoso: é apenas um esboço a preto-e-branco ao qual no futuro serão aumentados vida, cor e movimento.
Acrescento, porém, que não me satisfazendo ainda o produto que aqui fica vertido, resta-me a esperança de que seja um início, os primeiros passos, vagarosos mas firmas, de “um caminho que se irá fazendo ao andar”.                                                                          

2. Do Antigo Edifício
O antigo edifício dos Paços do Concelho da Póvoa de Lanhoso[3] situou-se, desde que há memória (porque antes poderá ter estado noutro local) e até meados do século XX, na praça mais central da vila da Póvoa, a nascente do ribeiro Pontido, em terrenos da freguesia de Fontarcada[4], num espaço então baptizado como Praça Municipal[5]. Ali o refere instalado, em 1726, Francisco Xavier da Serra Craesbeeck que, em páginas diferentes, lhe chama “Casa da Audiência e Cadeia” e “casa da câmara do concelho”[6].
Adianta-nos o citado Craesbeeck que, nesse início do segundo quartel do século XVIII, a Justiça era ali administrada por um juiz ordinário, três vereadores e um procurador, eleitos por períodos de três anos, tendo o direito de presidir à câmara o corregedor da vila de Guimarães. O corregedor de Guimarães era o próprio Craesbeeck. Da organização concelhia faziam ainda parte quatro tabeliães “do público, judicial e notas”, um escrivão da câmara e almotaçaria, um meirinho, que também desempenhava o cargo de carcereiro, e um juiz de órfãos, que tinha ao seu serviço um escrivão. Existia ainda um escrivão que assegurava o pagamento do imposto de Sisa à coroa. O poder militar, ainda segundo o citado autor, era exercido por três companhias da ordenação, um sargento-mor e seu capitão-mor, à época Gabriel de Araújo de Vasconcellos, Cavaleiro professo da Ordem de Cristo, Senhor da Casa de Lóbios (Galiza), da Honra dos Mogos, residente na cidade de Braga e descendente da Casa de Sinde, de Covelas (Póvoa de Lanhoso), de que era também Senhor.
Como se disse, a “casa da câmara” situava-se na praça mais central da vila ou lugar da Póvoa, enquanto o Pelourinho se encontrava no Largo da Fonte. Deste Pelourinho, ironicamente classificado como Monumento Nacional, não existe rasto algum desde finais do século XIX. Não se conhece a razão pela qual foi retirado nem que caminho levou.
Em frente ao edifício da câmara existia uma capela em honra de Nossa Senhora dos Remédios, que pertencia a Gonçalo Vieira da Silva, que nela vinha ouvir missa todos os sábados, pois que habitava numa quinta “que não fica muito distante do mesmo lugar”[7]. Esta capela foi demolida na década de 1880 para deixar a praça mais "airosa".
Renovada ou acrescentada no seu espaço físico sempre que necessário ou as parcas economias municipais o permitiam, esta velha “casa da câmara” aguentou-se em pé ao longo de vários séculos. Umas vezes de cara lavada, outras ostentando um aspecto fantasmagórico, passou por diferentes períodos da nossa história comunitária: foi local de recoleção de impostos quando a terra era gerida por senhores de fora; assistiu ao alvorecer do Liberalismo; foi palco de importantes episódios durante a revolta da “Maria da Fonte”; às mudanças resultantes da queda da Monarquia e da implantação da República; foi ocupada por militares aquando da “monarquia do norte”; serviu para receber por mais de uma vez em verdadeiro delírio o benemérito povoense António Ferreira Lopes; foi testemunha da chegada do Estado Novo. Desde data imemorial funcionarem no mesmo edifício o tribunal e cadeia concelhia e a câmara municipal.

2.1 Antes da renovação
Mas, como era este velho edifício, sede dos poderes de justiça e municipal? Antes de mais, torna-se necessário esclarecer que o edifício sofreu obras de remodelação na última década do século. Não foi totalmente reconstruído, como já se escreveu. Sofreu apenas uma significativa remodelação interior, e algumas adaptações na parte exterior.
Antes da remodelação, o edifício era assim construído:

“O edificio aonde se acham funccionando as repartições publicas dêste concelho situado na parte central da povoação tem de comprimento 24m,80, e de largura 12m,60, medidos exteriormente; as paredes externas apresentam a espessura de 0m,90.
As alturas interiores dos pavimentos regulam, a da cadeia de 4m,0 do solo á parte superior; a do entre-solo de 2m,4, e a do tribunal e outras repartições 3m,0.
O pavimento terreo a meio do edificio sobre o lado do sul é occupado pela cadeia da comarca, e a outra parte sobre o lado do norte, é occupado por uma arrecadação e outros misteres.
O pavimento superior ao terreo ou entre-solo sobre a dita arrecadação, no sentido de todos os comportatimentos do edifício é aonde se acham estabelecidas a Repartição da Fazenda, Administração do Concelho e Thesouraria da Camara Municipal. A outra meia parte do edifício é o vão da cadeia, que occupa toda a altura até ao pavimento superior, por onde se comunica por meio de alçapões.
O pavimento nobre é occupado pelo Tribunal de Justiça, e reduzidas dependencias; Camara Municipal e Conservatória.
A serventia para este edificio é estabelecida por uma disforme escada de pedra adaptada exteriormente, que dá ascesso pelo lado do sul ao pavimento nobre; deste pavimento há uma escada de acanhadas dimensões e mal disposta que dá communicação ao pavimento inferior entre-solo. Para este há uma communicação independente pela porta que se acha na fachada voltada ao nascente.
A distribuição actual do edificil não satisfaz ás necessidades do serviço, não só pela agglomeração do mesmo serviço em um só compartimento como succede á sala das sessões da Camara Municipal, que é tambem occupada pela secretaria da mesma Camara e Administração do Concelho aonde conjunctamente está o Administrador, mas tambem, pelas suas acanhadas dimensões: é pois uma necessidade melhorar a distribuição interior deste edifício; e dar-lhe uma apparencia condigna do seu fim, e da situação que occupa”[8].

Esta descrição do edifício, que integra a memória descritiva do projecto de obras datado de 1872, pertence ao arquitecto ou “condutor d’obras publicas” que elaborou o documento encomendado pela câmara. Tratava-se, como se vê, de um edifício pequeno: cerca de 25 metros de comprimento por 12,5 de largura. No seu interior, acolhida o tribunal, a câmara municipal, a administração do concelho e algumas repartições públicas.

Paços do Concelho da Póvoa de Lanhoso em 1902

Torna-se evidente que o edifício se apequenara com o estabelecimento de novas regras administrativas, na mudança do Absolutismo para o regime Liberal, especialmente com a promulgação do primeiro código administrativo português, em 1834. Os poderes judiciais e administrativos foram então separados. O juiz deixou de presidir à câmara, composta por este e por mais dois vereadores. A câmara passou a integrar cinco elementos eleitos, tendo sido ainda criada a figura do administrador do concelho com poderes muito alargados, enquanto representante local do governo. Câmara e administração do concelho passaram então a dispor de um conjunto de funcionários administrativos que ocupavam significativo espaço físico[9]. Não deixa de ser interessante anotar que muitas repartições públicas funcionavam, não no edifício, mas noutros espaços alugados pelo município a particulares, pelos quais pagava renda, dada a exiguidade do espaço disponível na sede camarária.
Um outro ponto que deve merecer uma breve nota, é a descrição que o autor do projecto aqui faz do edifício, na parte que respeita às cadeias. Segundo a sua descrição, as cadeias tinham toda a altura do piso térreo, e a elas acedia-se a partir do piso superior através de alçapões. Imaginemos como os presos e presas eram lá introduzidos, como lhes chegava a comida e as roupas, e como eram despejadas matérias das suas necessidades fisiológicas. Isto para não falarmos no ar que respiravam e na luz de que dispunham. Mas esta nota tem ainda a importância histórica de vir confirmar os cronistas que descreveram um dos episódios da revolução da Maria da Fonte. Nesses relatos, são unânimes em afirmar que, estando presas as suas companheiras, um grupo de mulheres dirigiu-se ao edifício e, desautorizando o juiz, tiraram as que se encontravam detidas por uns alçapões. A descrição do edifício que agora se publica vem, mais uma vez, comprovar a autenticidade dos textos que os cronistas locais da época nos deixaram, tal como comprova o poder da tradição oral que, um século e meio após a revolta de 1846, fazia também alusões às presas tiradas da cadeia pelos alçapões do tribunal.

2.2 O projecto e a remodelação
Na década de 1870 mandou a câmara municipal elaborar um projecto de obras, que lhe permitisse renovar o edifício, aproveitando da melhor forma possível o espaço existente. A ideia inicial seria manter no edifício existente o tribunal e a câmara, mandando construir de raiz uma cadeia que considerasse as novas filosofias Liberais na atenção que devia ser dada a todo o ser humano. Mas esse sonho não foi exequível, pela sempre eterna falta de meios, e, por isso, teve a câmara de mandar adaptar o espaço de que o edifício dispunha para continuar a albergar tribunal, cadeia e serviços municipais. Mandou, assim proceder a um projecto o mais económico possível, tendo por principal condição não aumentar as dimensões do edifício em comprimento e largura ou seja, aproveitando “o espaço actual para n’elle serem convenientemente accomodadas todas as reparticções publicas do concelho, aproveitando os desvãos para estabelecer o telegrapho e outras dependencias”[10].

Planta: piso térreo. Repartições, administração do concelho e cadeias


Planta: piso superior ou nobre. Tribunal, câmara e tesouraria

Voltemos, pois, às palavras escritas pelo “condutor d’obras publicas” a quem o projecto foi encomendado, pois elas melhor nos elucidarão:

“Nestas circunstancias, cumprindo as ideas emittidas, e que ficam expostas, procedi á elaboração do dito projecto que em resultado julgo satisfazer ao seu fim e condições estipuladas.
A distribuição está feita de maneira que os diversos compartimentos que constituem as repartições publicas se acham convenientemente dispostas, e com rasoaveis dimensões; a serventia para estas repartições acha-se tambem convenientemente disposta, tendo luz e ventilação superabundante.
As fachadas que teem de sêr modficadas aproveitando todo o material das janellas e portas, assim como os muros de face são de tal maneira projectados, que com grande economia, e sem luxo artistico, dão ao edificio aquella apparencia que indica o fim a que se destina, especialmente a fachada principal, porisso que tem de occupar uma das melhores situações da povoação, voltada sobre uma praça por onde breve terá de passar uma estrada que a meu vêr tem de sêr de considerável circulação”.

O projecto renova completamente o interior do edifício. O pavimento térreo passa a constar de um átrio que lhe dá acesso e a um vestíbulo, ao fundo do qual se situa a escadaria que, iluminada por uma claraboia e disposta em três lanços, leva ao piso superior. No piso térreo, à direita, situa-se a secretaria da administração do concelho e gabinete do administrador, enquanto à esquerda, voltados a sul, fica o espaço que se destina à conservatória e ao gabinete do conservador.
No piso térreo situam-se ainda os espaços destinados à fazenda pública, ao gabinete do escrivão da fazenda, recebedoria do concelho e tesouraria da camara, que ficam na parte mais a norte do edifício.
Depois das escadas ficam situadas as latrinas “que devem communicar com o competente fosso subterraneo devidamente construido”. A ligação destinada às latrinas faz-se por baixo da escadaria.
No piso superior, também chamado “pavimento nobre”, situa-se um hall de entrada, à esquerda do qual fica situada a sala do Tribunal, e, à direita, a sala das sessões da câmara municipal: “a primeira occupa toda a largura do edifício de norte a sul e a segunda a parte voltada a norte”.
A esquerda do átrio estabelece-se uma entrada privativa para o tribunal, enquanto à direita se situa uma serventia para a secretaria da câmara, para os gabinetes do juiz e do delegado da comarca. No piso superior fica outro conjunto latrinas, exactamente por cima das do piso inferior, sendo uma para o serviço privativa dos funcionários do tribunal, juiz e delegado.
O resto do espaço será aproveitado para o que mais convier. Há salas para testemunhas e uma outra para instalação da estação do telégrafo. O projecto contempla ainda uma sala destinada para os jurados e espaços para pequenas arrecadações.
Quanto ao exterior do edifício, o projecto contempla também algumas pequenas alterações, mais ao nível da decoração que da estrutura.

“Apresenta esta fachada oito janellas no pavimento terreo, e duas portas, dez janellas no pavimento nobre e duas nas mansardas.
O corpo do centro é formado por enxelharia e com a saliencia de 3cm,20 sobre os corpos lateraes; este corpo do centro é coroado por um frontão e o tympano decorado com o emblema da justiça; os corpos laterais são valorizados por plate-bande. A lese é formada por um sôcco o sobre sôcco de pedra de cantaria, e na altura do pavimento nobre tem um cordão com cornija tambem de cantaria. A cornija sobre a qual assenta a plate-bande é a mesma que actualmente cerca o edificio”[11].

As obras de que o edifício foi alvo, e que como dissemos ocorreram na última década do século XIX, não colheram a simpatia geral, antes pelo contrário, como mais adiante se verá. Isto apesar de Paixão Bastos, em 1907, ter afirmado que o edifício passara a dispor deste então “de maiores espaços e condições mais modernas”[12].

O edifício, implantado no centro da praça do Município. Seria demolido na década de 1960

Nessa renovação trabalharam várias dezenas de homens, desde simples serventes a qualificados lavristas, assentadores de granito, carpinteiros, ferreiros, pintores, jornaleiros, etc. Não havendo, à época, na Póvoa de Lanhoso, os “artistas” suficientes para os trabalhos de remodelação, foram muitos os que vieram dos concelhos vizinhos, tendo alguns deles ficado para sempre na terra, onde viriam a constituir família e a fazer história.
Um dos especialistas no trabalho em granito que nessa altura veio para a Póvoa foi António Pinto, o “Lavrador” que era, ao que a memória oral nos transmite, um eficiente “mestre pedreiro”. Natural de Adaúfe (Braga), António Pinto casar-se-ia na Póvoa de Lanhoso com D. Arminda da Silva, e desse casamento nasceria, em 16 de Novembro de 1898, um filho que viria a ser baptizado com o nome de Luiz Pinto da Silva. Esta breve referência tem o seu quê de curioso pois, décadas volvidas viria a ser esta criança, já como categorizado “mestre-de-obras”, o responsável pela construção do actual edifício, sobre qual mais à frente falaremos[13].
As obras de renovação do velho edifício custaram quatro contos de réis. Valor significativo para uma simples renovação, pois, menos de uma década depois, António Ferreira Lopes mandaria construir de raiz, com a beleza que se lhe conhece, o Theatro Clube pela soma de oito contos de réis.

Resumo dos custos das obras no edifício da câmara[14]


Obra de pedreiro demolição ……………. 42$550 rs


Obra de pedreiro cantarias ……….……. 1:221$920 rs.


Obra de Caiador ………………...…..….. 498$240 rs


Obra de Carpinteiro ………….......……. 1: 390$135 rs.


Obra de Pintor ….…………………..……..  220$735 rs.


Obra de Ferreiro ………………………….   195$310 rs.


Obras exteriores ……………….……….… 248$000 rs.


Obras imprevistas ……………..……...….. 183$130 rs.


Total ……………………...........……..…. 4:000$000 rs.


2.3 Obras mal aceites

Não obstante as obras efectuadas e a modernização de que foi alvo nessa recta final do século XIX, situado onde se situava, cortando a meio a maior e mais comercial praça da vila, o secular prédio era visto por muitas das pessoas mais influentes da terra como um empecilho ao desenvolvimento e ao embelezamento local.
É o que nos diz Paixão Bastos, a páginas 28 do seu livro “No Coração do Minho: A Póvoa de Lanhoso Histórica e Ilustrada”, quando, uma década talvez após a conclusão das obras, afirma:

“Passando por qualquer das pontes sobre o Pontido, depara-se-nos o edifício dos paços do concelho. O edifício é amplo e de construção moderna, mas, diga-se em abono da verdade, deixa-nos a impressão dum monturo no meio dum formoso jardim. Ali está aquele casarão, isolado e malfazejo, a embaraçar a vista e a elegância dos prédios do largo; e, embora os cofres municipais não abarrotem de dinheiro que possa remover dali tal entulho, vamo-lo tolerando até que outro o substitua em lugar mais próprio”[15].

Como se vê, pelo que atrás fica dito, a ideia da substituição do edifício tinha por base, não as características estéticas do prédio recuperado nem a falta de espaço físico ou o facto de estar desadequado aos serviços que ali eram prestados ao munícipe, mas o empecilho em que, na opinião de Paixão Bastos e de muitas outras figuras da época, a sua localização, no meio do largo mais importante da terra, enviesado e com a fachada principal virada a Sul, se tornara para o arejamento de uma vila que estava em franco crescimento e acelerada modernização[16].
Por fotografias da época sabe-se que a construção era bastante robusta e possuidora até de alguma beleza de linhas, com uma frontaria de granito e barro encimada por um brasão de bom cinzel[17]. Bem pintado, limpo e arejado no tocante aos gabinetes políticos e às instalações do tribunal. Mas as suas celas eram, ao que referem cronistas e jornais da época, “confrangedoras”. Esta situação da falta de condições das celas, era motivo constante de críticas nos jornais e de cartas enviadas pelo próprio juiz ao administrador do concelho e à câmara, solicitando melhores condições para os detidos.
Voltando ao edifício, a ideia de que era um estorvo à beleza da praça principal da vila foi ganhando apoios e até António Ferreira Lopes, então a figura mais influente da terra, apoiou a ideia de substituir os velhos Paços do Concelho por outros “mais modernos” e em “local mais airoso”.
Não obstante toda a movimentação e crítica pública vinda de um grupo de personalidades influentes e iniciada logo nos começos do século XX, só em 1928, duas décadas volvidas sobre o lançamento da ideia por Paixão Bastos, é que a oportunidade de avançar com a obra do novo edifício surgiu, quando, ao falecer em Lisboa, em 22 de Dezembro de 1927, António Ferreira Lopes legou trezentos contos de réis ao município, expressamente destinados à construção de um novo edifício dos paços do concelho e tribunal. À data, era muito dinheiro; o suficiente para edificar um magnífico prédio novo, se considerarmos que em 1904 a construção do edifício do Theatro Club custou oito contos de réis e em 1917, a do Hospital António Lopes, rondou os cento e cinquenta.
Mas, ao contrário daquilo que o “brasileiro” das “Casas Novas” desejava ao elaborar o seu testamento, a entrega da herança iria complicar-se e atrasar-se por vários anos. Por isso, só mais de duas décadas depois o novo edifício seria edificado.
É sobre esse processo, que começa com elaboração de um plano de urbanização da vila logo em 1930, pelo lançamento de concursos públicos para escolha de um projecto para o novo edifício (que esteve projectado para o Largo António Lopes, para o exacto local onde hoje se encontra implantada a escola que tem o nome do grande benemérito povoense), pelas mudanças políticas que levaram à ditadura do Estado Novo e, durante esse período, aos avanços e recuos, bem como às divergências entre as elites político-sociais do tempo, que um dia voltaremos a abordar para completar este pedaço da nossa história.


**Licenciado em História pela Universidade do Minho e Doutorando em História Contemporânea pela mesma instituição. É Bolseiro da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia e investigador do CITCEM/UM.
Para citar este artigo:
Coelho, José Abílio, Paços do Concelho da Póvoa de Lanhoso: um presente com futuro (parte 1), in: "Quiosque de História",
disponível: < http://www.blogger.com/blogger.g?blogID=7454200755558765709#editor/target=post;postID=5338035290371236240>
[data.hora da visualização]
[1] Este texto é parte integrante de um estudo mais abrangente, que abarca a história do velho e do novo edifício dos Paços do Concelho da Póvoa, este último inaugurado na década de 1940, e que deverá publicar-se em livro em breve.
[2] Coelho, José Abílio, Os Paços do Concelho, in “Boletim Municipal da Póvoa de Lanhoso”, nº 6, de Dezembro de 2002, pp. 11-18.
[3] Para um melhor conhecimento da história dos concelhos e do municipalismo em Portugal cf., entre outros: Coelho, Maria Helena da Cruz; Magalhães, Joaquim Romero de, O Poder Concelhio: Das Origens às Cortes Constituintes. Notas da História Social, Coimbra, Centro de Estudos e Formação Autárquica, 1986; Oliveira, César (Dir.), História dos Municípios e do Poder Local. Dos Finais da Idade Média à União Europeia. Lisboa, Círculo de Leitores, 1995; Marques, José, Os Municípios Portugueses dos Primórdios da Nacionalidade ao fim do Reinado de D. Dinis, Alguns Aspectos, Porto, Universidade Portucalense, 1993.
[4] Até 1930, a Vila da Póvoa estava divida por duas freguesias: a nascente do ribeiro Pontido, situava-se Fontarcada e, a poente, Lanhoso.
[5] Hoje Praça Eng.º Armando Rodrigues
[6] Craesbeck, Francisco Xavier da Serra, Memórias Ressuscitadas da Província de Entre Douro e Minho, Ponte de Lima, Edições Carvalhos de Basto, 1992.
[7] Craesbeck, Francisco Xavier da Serra, Op.cit., p.
[8] Arquivo Municipal da Póvoa de Lanhoso (doravante AMPL), Peças Escriptas, Obras Publicas, Municipalidade da Póvoa de Lanhoso, Projecto de aproveitamento do edificio aonda funcionam as repartições publicas deste concelho. Nova distribuição a fazer internamente para melhor accommodação das ditas repartições. 1º Memória descriptiva, Braga, 15 de Desembro de 1872, s/ paginação.
[9] Para melhor se compreender o funcionamento dos municipios no período em questão, ver: Nogueira, J. Felix Henriques, O Município no Século XIX, Lisboa, Ulmeiro, 1993. Trata-se de uma monografia publicada pela primeira vez em 1856, e décadas mais tarde reeditada depois de revista e anotada por Agostinho Fortes.
[10] AMPL, Peças Escriptas, Obras Publicas, Municipalidade da Póvoa de Lanhoso, Projecto de aproveitamento do edificio aonda funcionam as repartições publicas deste concelho. Nova distribuição a fazer internamente para melhor accommodação das ditas repartições. 1º Memória descriptiva, Braga, 15 de Desembro de 1872, s/ paginação.
[11] AMPL, Peças Escriptas, Obras Publicas, Municipalidade da Póvoa de Lanhoso, Projecto de aproveitamento do edificio aonda funcionam as repartições publicas deste concelho. Nova distribuição a fazer internamente para melhor accommodação das ditas repartições. 1º Memória descriptiva, Braga, 15 de Desembro de 1872, s/ paginação.
[12] Bastos, Paixão, No Coração do Minho: a Póvoa de Lanhoso Histórica e Ilustrada, Tipografia Henriquina a Vapor, Braga, 1907.
[13] Santos, Magalhães, Monografia da Póvoa de Lanhoso (Nossa Senhora do Amparo), Póvoa de Lanhoso, ed. Autor 1990.
[14] ACMPL, Peças Escriptas, Obras Publicas, Municipalidade da Póvoa de Lanhoso, Projecto de aproveitamento do edificio aonda funcionam as repartições publicas deste concelho. Nova distribuição a fazer internamente para melhor accommodação das ditas repartições. 4º Orçamento, Braga, 15 de Desembro de 1872, s/ paginação.
[15] BASTOS, Paixão, ob. Cit., p. 27.
[16] Também a Casa da Botica esteve por mais de uma vez, e pelo mesmo motivo, destinada ao camartelo. Era moda, ao tempo, “arejar” ruas e praças. No Largo António Lopes foram deitadas abaixo, nos finais do século XIX, algumas casas e uma bonita fonte.
[17] O brasão encontra-se à entrada dos actuais Paços do Concelho