terça-feira, 1 de maio de 2012

A benemerência de António Ferreira Lopes: fortuna adquirida no Brasil ao serviço dos pobres e doentes de um concelho rural do Baixo Minho


Por José Abílio Coelho *



Introdução

Quando em 1498 a rainha viúva D. Leonor fundou a primeira Misericórdia portuguesa, numa capela da Sé de Lisboa, estava, não sabemos se consciente, se inconscientemente, a dar início a uma rede paradigmática de instituições destinadas à prática da caridade. Com o apoio régio e, na maioria dos casos, a melhor recepção por parte das elites locais, a Misericórdia de Lisboa viu-se rapidamente acompanhada de muitas outras instituições congéneres, não apenas em grande parte dos municípios do continente como, também, nas possessões portuguesas espalhadas pelo mundo[1]. De facto, a criação da Misericórdia de Lisboa, “da qual como de fonte nasceram todas as outras”[2], foi candeia de primeira luz para o caminho que se lhe seguiu no estender, cada vez mais abrangente, destas “domus caritatis”. Tamanho foi o sucesso e tantas vezes repetido o acto de fundação que, por 1750, funcionavam já em território sob jurisdição portuguesa, como escreveram Marta Lobo e José Pedro Paiva, cerca de quatrocentas instituições da mesma natureza[3]. A estas cerca de quatro centenas de Misericórdias de meados do século XVIII juntaram-se, entre o final do reinado de D. João V (31 de Julho de 1750) e o términos da Guerra Civil de 1832-1834, mais dezoito instituições[4]; outras vinte e seis, entre 1834 e 1910[5]; e, entre a Implantação da República e o golpe militar de 28 de Maio de 1926, mais treze Santas Casas[6].
Não se pense, contudo, que estas mais de quatro centenas e meia de Misericórdias identificadas pela historiografia portuguesa, fundadas entre Agosto de 1498 e Maio de 1926, cobriam com o seu manto misericordioso todos os concelhos do país, mesmo depois de os municípios terem sido reduzidos de cerca de 800, em 1827, a menos de metade até 1842, ano em que apenas se contabilizavam 381 concelhos[7]. O que aconteceu, por esta altura, é que alguns dos municípios que incorporaram os congéneres extintos, passaram a ter mais de uma Santa Casa, enquanto outros se viram na necessidade, por as não poderem sustentar, de extinguir algumas das existentes ou de as unir numa só. Pelo que atrás ficou dito e por outras razões que não cabe aqui analisar, no século XIX continuava a existir significativo número de concelhos que não dispunham de uma Misericórdia.
O distrito de Braga, que em 1842 agregava sessenta concelhos, estava, cerca de duas décadas depois, reduzido a apenas treze. Nestes treze concelhos, como verificava o governo civil em 1866, existiam apenas cinco Santas Casas[8].
Póvoa de Lanhoso, divisão administrativa situada num dos vértices do triângulo Fafe-Guimarães-Braga, era um dos oito concelhos do distrito bracarense que, na referida data de 1866, não possuía nem Misericórdia, nem qualquer outro tipo de instituição de apoio a pobres ou doentes[9]. Na segunda metade do século XIX e durante as primeiras décadas da centúria seguinte, a assistência aos doentes pobres da terra era prestada, nos termos das Leis Liberais, pela Câmara Municipal[10], que pagava regularmente subsídios a amas-de-leite para alimentação de expostos, atribuía pequenas quantias para a criação de crianças pobres, especialmente órfãs, suportando, ainda, o ordenado de um facultativo municipal que, em finais da centúria, assistia os desprovidos de saúde e bens das vinte e oito freguesias que compunham o concelho, as quais, dispersas cerca de 130 quilómetros quadrados, albergavam uma população de 16.928 pessoas[11]. Uma tarefa hercúlea para um único médico, como se pode adivinhar. Hercúlea, e muitas vezes fracassada. De tal forma que em sessão de 4 de Janeiro de 1905, a câmara decidiu pedir ao governo de Sua Majestade aprovasse a criação de um segundo partido médico para o município, por “muitas vezes fallecerem, no concelho, várias pessoas sem assistencia medica, sobretudo entre as classes menos abastadas, onde quase sempre faltam recursos para recorrerem a clinicos particulares”, alegando ainda o executivo que “velar pela saude e vida dos cidadãos é o primeiro e mais sagrado dever da administração publica (…)”[12].
Porém, se o facultativo do partido municipal tentava, ainda que com grande dificuldade (deslocando-se tantas vezes a cavalo distâncias superiores a dez quilómetros por serras de vales) acudir aos doentes de todo o concelho que procuravam os seus serviços, já os acidentados viam-se obrigados a recorrer ao Hospital de Braga, distante da Vila da Póvoa cerca de vinte quilómetros por mau caminho. Nos finais de oitocentos e no início da centúria imediata, a imprensa local inseria dezenas de pequenas notícias sobre o transporte para o Hospital de Braga, em carros-de-bois e outros veículos de tracção animal, de trabalhadores que se feriam, com gravidade, em geral nos trabalhos agrícolas ou nas pedreiras de extracção de granito, abundantes na terra. Segundo as mesmas notícias, alguns destes acidentados eram “pensados” numa das farmácias então existentes na pequena vila antes de transportados a Braga, numa viagem que podia demorar duas horas.
A primeira tentativa — frustrada, diga-se —, de o concelho da Póvoa de Lanhoso, possuir um hospital destinado às pessoas de menores posses, ocorreu em 1901, quando um proprietário agrícola, rico e sem herdeiros directos, legou a maior parte dos seus bens para a instituição de uma unidade de saúde na freguesia de Brunhais. Mas o tempo passou sem que os testamenteiros de Francisco Xavier da Cruz Araújo cumprissem a sua última vontade[13].
Passaram-se, entretanto, dezasseis anos, até que, em 1917, um “brasileiro” oriundo da terra e regressado do Rio de Janeiro com vastíssima fortuna, fundou um hospital destinado a pobres de todo o concelho[14].

Os “brasileiros” e a pobreza
Muitas centenas, se não mesmo milhares de “brasileiros” regressaram definitivamente ao concelho da Póvoa de Lanhoso ao longo do século XIX e na primeira metade do século XX, depois de anos de intensa labuta naquele território da América do Sul[15]. A exemplo daquilo que ocorreu um pouco em todo o Norte de Portugal, muitos deles voltaram tão pobres como partiram, tendo-se esvaído em desilusão o sonho que os levara a atravessar o Atlântico. Outros vieram simplesmente remediados, ou porque a vida lhes não abrisse de todo o sorriso da sorte, ou porque permaneceram por lá poucos anos, trazendo consigo apenas o suficiente para liquidarem empréstimos e penhoras sobre as terras e as casas agrícolas das famílias ou para, cá chegados, montarem um pequeno negócio que lhes permitisse sobreviver, como à família nuclear, no torrão natal. Contudo, dessa mole imensa que se aventurou a procurar o sucesso na “terra da promissão”, alguns houve, ainda que em pequena percentagem que rondaria os 5%, segundo Jorge Fernandes Alves, que regressaram ricos ou mesmo muito ricos[16]. A estes últimos, pequeno grupo de “opulentos capitalistas” deve o norte do país e, no caso em apreço a Póvoa de Lanhoso, enorme quantidade de obras e melhoramentos que se reflectiram na vida pública.

O filantropo António Ferreira Lopes
António Ferreira Lopes foi o mais dedicado filantropo de entre todos os “brasileiros” que regressaram à Póvoa de Lanhoso[17]. Nascido em 14 de Abril de 1845[18], partiu para a “terra da promissão” em 7 de Setembro de 1857[19], com apenas 13 anos de idade. Ali casou e enriqueceu.[20]. Não vem ao caso entrarmos aqui em pormenores sobre a vida de António Lopes no Rio de Janeiro. O que interessa registar é que, riquíssimo e sem filhos, regressou a Portugal, com a esposa, D. Elvira de Pontes Câmara Lopes, em 1888[21], contando apenas 44 anos de idade.

António Ferreira Lopes (1845-1927)
Em Lisboa, comprou à famosa actriz Rosa Damasceno, para sua residência habitual, um palacete em plena avenida da Liberdade[22]. Na Póvoa de Lanhoso, sua terra natal, mandou construir outro edifício, ainda de maiores dimensões e mais luxuoso que o de Lisboa. Para além deste edifício conhecido como Palacete das Casas Novas, adquiriu quintas e montados, campos e quintais, casas, terrenos, lages, cobertos e minas de água; enfim, quase tudo o que de bom havia para comprar, não só na vila, mas também nas freguesias circunvizinhas.
Mas a riqueza que agora possuía não o fez esquecer-se da vida áspera que levava quando, poucas décadas antes, partira para o Brasil “pobre como Jó”. Por isso, os seus bolsos foram-se abrindo em favor da terra e dos conterrâneos mais pobres.
Em 1904, fundou uma Corporação de Bombeiros e, em 1905, construiu uma belíssima casa de espectáculos que colocou ao serviço da terra. Do seu cofre abastado, saiu ainda dinheiro para apoiar as mais diversas instituições sócio-culturais, para construir estradas e caminhos, para ajardinar espaços que lhe pertenciam e que posteriormente ofereceu à Câmara, destinados à utilização dos munícipes. Na primeira década do século, mandou edificar um bairro composto de treze pequenas mas airosas casas destinadas a albergar gratuitamente operários pobres.
Em tudo foi sempre apoiado pela esposa que, na terra, os pobres passaram a apelidar de “mãe” e “santa”, tal como os jornais locais que sempre viram nela o coração magnânimo por detrás do rosto filantrópico do marido.
Habitando em Lisboa grande parte do ano, o casal costumava passar cerca de três meses por ano no palacete que possuía na Póvoa de Lanhoso. Nesse tempo, que em geral ocorria entre Setembro e finais de Novembro, os portões das Casas Novas abriam-se quase todos os dias para receberem os necessitados. Dona Elvira Câmara Lopes, por todos aclamada como “a protectora dos pobres” que na sua residência recebia, para lhes atenuar a fome e o frio, crianças e mulheres que viviam na mais profunda miséria, sentia como lança a atravessar-lhe o coração as dificuldades dos pobres e dos doentes. Assim a descrevem, sem excepção, os jornais que à época se publicavam na terra. Assim a vemos nós, ainda hoje, num conjunto de fotografias que escaparam à destruição do tempo, quando os portões do terreiro do seu palacete se abriam de par e par e por ali adentro acediam à protecção daquela senhora franzina e de olhos vivos várias dezenas de crianças e mulheres, esfarrapadas e descalças. A todos consolava, a todos estendia a mão fraterna, a todos distribuía alimento e agasalho. Por isso, tantos lhe chamaram “mãe”, apesar da Providência lhe não ter dado filhos naturais; por isso, outros tantos a apelidaram de “santa”, embora a bondade do marido a não obrigasse a esconder no avental o pão para os pobres por milagre transformado em rosas. Por 1906, D. Elvira começou a sofrer de uma patologia degenerativa, o que aproximou ainda mais dos pobres e dos doentes. Foi por esta altura que, profundamente marcada pelas necessidades alheias, começou a pedir ao marido que construísse na Póvoa de Lanhoso um hospital para os mais necessitados do concelho.
Dona Elvira de Pontes Câmara Lopes faleceu na madrugada de 11 de Fevereiro de 1910, aos 56 anos de idade. Em Agosto desse mesmo ano, o marido regressou por breves semanas ao Rio de Janeiro, cremos que para colocar em seu nome tudo quanto pertencera à esposa, já que haviam casado em regime de separação de bens. Terá sido nessa altura que António Lopes decidiu construir o hospital que a esposa tantas vezes lhe pediu? Não temos suporte documental para o afirmar, mas é bem provável que assim tenha sido. Sabemos é que, no Verão de 1912, já o arquitecto bracarense Moura Coutinho trabalhava no projecto do Hospital. Em Setembro do mesmo ano António Lopes celebrou perante o notário Alfredo António Ribeiro o contrato de construção de um edifício destinado a hospital, “d’harmonia com a respectiva planta, seu projecto e demais peças, e debaixo das condições do mesmo”, obrigando-se os mestres a ter a obra de pedra totalmente concluída em Março de mil novecentos e catorze, “pagando os empreiteiros ao proprietário mil reis por cada dia que exceder a este prazo ou recebendo aqueles d’este a gratificação de duzentos mil reis, se a obra se concluir dentro d’esse prazo e a contento do proprietario”[23]. Concluída a obra em grosso, dotou-a das mais modernas tecnologias, sendo o primeiro edifício da terra a possuir electricidade, fornecida por um gerador. Para além de duas enfermarias, uma destinada a doentes do sexo feminino, outra aos do sexo masculino, com uma lotação que chegou às quinze camas por enfermaria, o hospital dispunha ainda de maternidade e de bloco de operações, bem como de alguns quartos particulares, destinados a doentes que pudessem pagar do seu bolso o internamento.
A inauguração, que contou com a presença do fundador, ocorreu a 5 de Setembro de 1917, data do aniversário natalício de D. Elvira Câmara Lopes. As enfermarias começaram de imediato a receber os primeiros doentes pobres. O bloco operatório foi estreado logo a 15 de Setembro com uma intervenção num menor de 10 anos que, na sequência de um desastre, ficara com um pé completamente esmagado, pelo que teve de sofrer a amputação de uma perna, operação feita pelos médicos Abílio Areias e Pinto Bastos, facultativos do hospital[24].

Hospital António Lopes, inaugurado em 5 de Setembro de 1917
Porque se destinava primeiramente aos pobres do concelho — e não podemos esquecer-nos de que Portugal se encontrava envolvido na I Grande Guerra, com as consequências que ela teve em toda a Europa e por arrastamento no nosso país, onde a pobreza cresceu assustadoramente — a direcção do hospital, desempenhada por um sobrinho do fundador, mandou publicar na imprensa local um aviso onde se lia que “todos aqueles que tenham de fazer qualquer tratamento gratuito no Banco do Hospital, devem apresentar atestado de pobreza passado pelo paroco ou pela junta de paroquia da freguesia de sua residência”. O mesmo anúncio informava que o serviço de consultas e curativos tinham lugar todos os dias, das nove horas ao meio dia, que aos domingos não se realizariam mais que as consultas urgentes; e que o hospital não recebia alienados nem doentes atacados de doenças infecciosas ou incuráveis. A finalizar, avisava-se que os atestados de pobreza ficariam arquivados na secretaria, sendo válidos pelo prazo de um ano, e que não eram fornecidos a doentes externos mais medicamentos que os “ferruginosos e óleo de fígado de bacalhau”, para além de nenhum doente poder dar entrada no hospital fora de hora própria a não ser em caso de desastre ou moléstia grave que exija socorro urgente[25].
A casa de saúde fundada por António Lopes tornou-se um modelo nacional, sendo amiudadas vezes visitada por figuras de relevo nacional, como aconteceu em Novembro de 1917 com o Dr. António José de Almeida, médico, ex-primeiro ministro de Portugal e futuro presidente da República”[26]. Na sequência desta visita, o jornal “República”, fundado pelo líder do Partido Evolucionista, do qual o “brasileiro” das Casas Novas era simpatizante, publicava em primeira página uma extensa reportagem onde se lia:

“Inaugurou-se há poucos meses naquela vila minhota (Póvoa de Lanhoso) a notabilíssima obra de assistência social que o Sr. António Lopes planeara no seu conjunto e em todos os seus detalhes. Na construção e na instalação desse hospital não gastou o prestantíssimo cidadão menos de 150 mil escudos. Pode porém ter a certeza de haver realizado uma obra perfeita (…). O hospital António Lopes, que este povoense edificou, como dissemos, e que com largueza sustenta à sua custa, é um estabelecimento que pode servir de padrão a todos os que no seu género existem em Portugal, como sendo de todos os melhor. As pessoas que o têm visitado — entre as quais não são poucas as que dispõem de conhecimentos técnicos e já puderam observar instituições similares da mais conhecida e justa notoriedade — são unânimes em afirmar que não se encontra ali uma única deficiência (...). Dir-se-ia que sobre a elaboração da obra pairou ainda o espírito, de altas virtudes e bondade afável, da falecida esposa do instituidor, dessa senhora de coração dedicado cuja respeitável memória deve ter contribuído em grande parte para a efectivação de um tão magnânimo acto de benemerência (...)”[27].

Em 1918-1919, aquando da pandemia conhecida por Pneumónica, não podendo internar no seu hospital os doentes atacados por essa terrível patologia que tantas mortes provocou — não podemos esquecer que a Pneumónica era altamente contagiosa — António Lopes colocou-se à frente de uma comissão municipal que prestou apoio não apenas aos atacados pela boncopneumonia, mas, também, às suas famílias, pagando-lhes alimentação, remédios e, nos casos mortais, o enterramento das vítimas. Abriu, com 200 mil réis, uma subscrição pública, exercendo depois a sua influência para que outros membros das elites locais comparticipassem do esforço no apoio os doentes que não dispusessem de meios para se tratarem. Da Igreja, conseguiu o empréstimo de um edifício, retirado do centro da Vila, uma residência paroquial que tinha todas as condições para ser transformada numa espécie de hospital provisório. Para o acompanhamento dos doentes, disponibilizou o apoio dos médicos que exerciam no seu hospital, assim conseguindo que centenas e centenas de doentes tivessem os necessários cuidados. Pelas pequenas notícias inseridas na imprensa local, calcula-se que o “brasileiro” das Casas Novas tenha dispendido no apoio a estes doentes alguns contos de réis, sem, contudo, ter descurado o funcionamento do hospital que tinha o seu nome.

A morte do fundador e a criação da Misericórdia

Até à sua morte, ocorrida em 22 de Dezembro de 1927, António Ferreira Lopes custeou todas as despesas com o seu hospital. Ordenados e despesas com médicos, enfermeiras, ajudantes de enfermaria, cozinheiras, serventes, funcionários de secretaria, empregadas de limpeza ou jardineiro, alimentação, mobiliários, instrumentos médico-cirúrgicos, medicamentos, materiais de ambulatório, etc., tudo corria por sua conta. E foram milhares os pobres que beneficiaram desses serviços. Em 1928, poucos meses após a morte do fundador, foram tornados públicos os números dos primeiros dez anos de funcionamento do hospital, quer quanto ao número de hospitalizações, consultas e curativos, quer no respeitante aos internamentos por sexo e profissão.
As hospitalizações ultrapassaram as 2 mil, enquanto as consultas externas beneficiaram quase oito mil doentes. Sobem a mais de quinze mil o número de curativos, tudo isto num concelho que, à época, tinha cerca de 17.500 habitantes.
Pelo quadro dos internamentos por profissão, concluiu-se rapidamente que, no caso dos homens, eram os profissionais de menores posses os que mais acolhimento tiveram, com os jornaleiros (240), os criados (155) e os que não tinham “profissão definida” (135) — talvez o equivalente aos desempregados de hoje — que ali entraram em maior número. No respeitante às mulheres, o número das domésticas (433) e o das criadas (197), destaca-se muito de todas as restantes. É também significativo o número de mendigos internados gratuitamente nos dez anos em apreço: 50 homens e 35 mulheres.


Gráfico 1: Hospitalizações, consultas e curativos efectuados gratuitamente entre 1917 e 1928[28]



Quadro 1: Números dos internamentos por sexo e profissão (1917-1928)[29]



Mas se os números constantes do gráfico e do quadro apresentados nos deixam a clara indicação do altíssimo número de doentes atendidos gratuitamente ao longo de uma década[30], parece-nos da mesma forma importante saber-se que o “brasileiro” das Casas Novas não se limitou a sustentar o funcionamento da sua “obra de ternura e de amor”: o escritor Campos Lima confessava, em pequena nota dada a público num semanário local logo depois da morte do benemérito, que os pobres tratados no hospital António Lopes eram como que família do fundador, que ia quase diariamente e sempre que se encontrava na Póvoa de Lanhoso, visitar os cada um dos internados. “E essas palavras de conforto, prova da sinceridade e da grandeza de alma que inspiraram a acção de solidariedade [de António Lopes], valiam bem mais que os muitos contos de reis por ele gastos para levantar essa instituição modelar (…), a única que conheço em que os doentes não desejam que lhes dêem alta, para continuarem sendo tratados com os cuidados e carinhos que muitos d’eles não podem ter em sua própria casa”[31].
Podem parecer-nos exageradas as palavras de Campos Lima, fruto da grande amizade que ligou os dois homens. Mas não o terá sido assim tanto, pois António José de Almeida, já então ex-Presidente da República, foi ainda mais longe, e, numa outra breve nota publicada no mesmo hebdomadário, afirmou:

“Este homem simples, a um tempo amorável e rígido, manteve-se, em tudo, fiel às suas tradições de filho do Povo. Jamais se aristocratizou, a não ser na espontânea nobreza dos seus sentimentos, que constituíram uma rara estirpe moral. E sendo em vida um exemplo da democracia generosa e sadia, ainda do túmulo nos deu lições de quanto vale para os homens de coração bem formado a recordação das gentes humildes, do cujo seio provieram e cuja convivência lhes modelou o porte moral.
É interessante a lista dos legados que, no seu testamento, deixou. Lá há de tudo como um mostruário de filantropia inesgotável. Há lembranças para amigos, dádivas elegantes que valem, sobretudo, pela sua expressão espiritual. E há a grande massa testamentária de dons e benesses que deixaram ricas tantas pessoas e remediadas muitas outras, tendo especiais cuidados para com os pobres e deserdados.
A lição moral que resulta da sua vida e do testamento deste cidadão é magnífica e foi, sem dúvida, a melhor cláusula das suas últimas disposições”[32].

Como se disse já, António Ferreira Lopes faleceu no seu palacete de Lisboa aos 22 de Dezembro de 1927. No seu testamento, feito seis meses antes, deixou suficientemente ricos a grande maioria dos familiares. Aos amigos e servidores, deixou quantias significativas, bem como a um conjunto de instituições, portuguesas e brasileiras. Mas o hospital por si fundado era a “menina dos seus olhos”. No testamento, e depois de deixar bem claro que o construiu para servir os doentes pobres da sua terra, legou-o à Póvoa de Lanhoso, indicando aos seus testamenteiros que entregassem a sua gestão à Câmara ou que, em alternativa, fundassem uma qualquer instituição para o gerir. E foi assim que, em Dezembro de 1928, ao completar-se um ano sobre a sua morte, os testamenteiros criaram a “Misericórdia e Hospital António Lopes da Póvoa de Lanhoso”[33]. Para sustentar a obra que criara em favor dos pobres da sua terra, o benemérito deixou mais de dois mil contos em dinheiro e em títulos da dívida pública.



* Licenciado em História pela Universidade do Minho, onde é Doutorando em História Contemporânea. É Bolseiro da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia. e Membro do CITCEM/UM.
Este trabalho foi apresentado nas IV JORNADAS INTERNACIONALES SOBRE MARGINACION Y ASSISTENCIA SOCIAL EM LA HISTORIA. SOCIEDAD Y MARGINACIÓN EM LA PENÍNSULA IBÉRICA, que decorreram em 3 e 4 de Novembro de 2011 na Universidade de León (Espanha).
[1] Para um melhor conhecimento da história das Misericórdias, consultar, entre outros: Sá, Isabel dos Guimarães; Lopes, Maria Antónia Lopes, História Breve das Misericórdias Portuguesas, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2008. Araújo, Maria Marta Lobo de, Dar aos pobres e emprestar a Deus: as Misericórdias de Vila Viçosa e Ponte de Lima (Séculos XVI-XVIII), Barcelos, Santa Casa da Misericórdia de Vila Viçosa e de Ponte de Lima, 2000; Sá, Isabel dos Guimarães, Quando o rico se faz pobre: misericórdias, caridade e poder no Império Português: 1500-1800, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997. Sá, Isabel dos Guimarães, “A fundação das Misericórdia e a rainha D. Leonor (1458-1525): uma reavaliação”, in As Misericórdias Quinhentistas: Actas das II Jornadas de Estudo sobre as Misericórdias, Penafiel, Câmara Municipal de Penafiel, 2009, pp. 15-33.
[2] Basto, Artur de Magalhães, “O espírito que presidiu à criação das Misericórdias”, in Actas do IV Congresso das Misericórdias, vol. I, Lisboa, 1959, p. 1.
[3] Araújo, Maria Marta Lobo de; Paiva, José Pedro, “Introdução”, in Paiva, José Pedro (coord. Científico), Portugaliae Monumenta Misericordiarum: Estabilidade, grandeza e crise: da Restauração ao final do reinado de D. João V, vol.6, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2007, p. 7.
[4] Lopes, Maria Antónia; Paiva, José Pedro, “Introdução”, in Paiva, José Pedro (coord. Científico), Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Sob o signo da mudança: de D. José I a 1834, vol. 7, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2010, p. 22.
[5] Lopes, Maria Antónia; Paiva, José Pedro, “Introdução”, in Paiva, José Pedro (coord. Científico), Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Tradição e modernidade: o período da monarquia constitucional, vol. 8, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2010, p. 29.
[6] Paiva, José Pedro; Fontes, Paulo F. Oliveira, “Criação de Misericórdias”, in Paiva, José Pedro (coord. Científico), Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Misericórdias e secularização num século turbulento (1910-2000), vol. 9 – Tomo I, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2010, pp. 375-387.
[7] Oliveira, César, “Os municípios no liberalismo monárquico constitucional”, in Oliveira, César (Dir.), História dos municípios e do poder local: dos finais da Idade Média à União Europeia, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, p. 208. Sobre a problemática da administração dos concelhos desde os finais do século XVIII até às reformas encetadas pelo Liberalismo, veja-se: Capela, José V, “Administração local e municipal portuguesa do século XVIII às reformas Liberais (Alguns tópicos da sua Historiografia e nova História)”, in Os Municípios no Portugal Moderno; Dos forais manuelinos às reformas liberais, Lisboa, Ed. Colibri-CIDEHUS-EU, 2005, pp. 39-58, bem como a obra de César Oliveira anteriormente citada.
[8] Lopes, Maria Antónia; Paiva, José Pedro, “Introdução”, in Paiva, José Pedro (coord. Científico), Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Tradição e modernidade: o período da monarquia constitucional, vol. 8, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2010, p. 25.
[9] Na sequência do decreto de 31 de Dezembro de 1854, o concelho de São João de Rei foi definitivamente integrado no da Póvoa de Lanhoso, passando este a contar com 28 freguesias, em vez das 14 que o compunham em 1838, Das 14 freguesias nesta data integradas no concelho da Póvoa de Lanhoso, 11 haviam pertencido ao de São João de Rei (Cf. Freitas, Paulo Alexandre Ribeiro Freitas, O Liberalismo na Póvoa de Lanhoso. O Administrador do Concelho na Revolução da Maria da Fonte, tese de mestrado policopiada, repositório da Universidade do Minho, Outubro de 2010, p. 35). Apesar do concelho de São João de Rei ter possuído uma Misericórdia a partir da década de 1510 (Cf. Sá, Isabel dos Guimarães, “As Misericórdias da fundação à União Dinástica”, in Paiva, José Pedro (coord. Científico), Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Fazer a História das Misericórdias, vol. 1, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2002, p. 22), esta deve ter-se extinguido muito cedo, talvez devido o pequeno tamanho daquele concelho que no século XVI seria composto por apenas três freguesias. Na verdade, excluindo a referência feita por Isabel dos Guimarães Sá à Misericórdia de São João de Rei, colhida na Chancelaria de D. Manuel I, não encontramos, até ao momento, qualquer outra fonte que a refira.
[10] Para um conhecimento mais alargado da assistência aos necessitados durante o Liberalismo, cf. Lopes, Maria Antónia, “Os pobres e a assistência pública”, in Mattoso, José (dir.), História de Portugal, Vol. 5, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 501-515.
[11] Censos da População do Reino de Portugal no 1º de Dezembro de 1900, volume I, Fogos – população de Residência Habitual e População de Facto, distinguindo sexo, naturalidade, estado civil e instrução ementar, Lisboa, Imprensa Nacional, 1905, p. 82.
[12] Cf. Arquivo Municipal da Póvoa de Lanhoso, Actas da Câmara, livro nº. 16, fls. 35v-37.
[13] Coelho, José Abílio, “Apoio privado à pobreza: a influência do ‘catolicismo social’ no legado de Francisco Xavier da Cruz Araújo”, comunicação proferida no Seminário Internacional Marginalidade, pobreza e respostas sociais na Península Ibérica (séculos XVI-XIX), que teve lugar na Universidade do Minho no dia 5 de Maio de 2011, e cujas Actas se encontram no prelo.
[14] Só em 1925 viria a ser fundada na Vila da Póvoa uma outra instituição destinada à prática da caridade: na verdade, tratava-se de uma dependência da Conferência de São Vicente de Paula, a qual, “patrocinada por um grupo de senhoras da elite povoense”, passou a funcionar na nova freguesia de N.ª S.ª do Amparo, tendo como “fim humanitario pôr em pratica as duas principais Obras de Misericordia da doutrina cristã: Dar de comer a quem tem fome e vestir os nus”. Cf. Jornal Maria da Fonte de 13 de Setembro de 1925. Esta instituição seria, cerca de três anos depois, responsável pela abertura do “Azilo de Inválidos de São José”, que funcionou, sob orientação do pároco do Amparo, Pe. José António Dias, até 1966, quando a “Misericórdia e Hospital António Lopes”, depois de adquirir, com parte do legado de Francisco Peixoto, o palacete que pertencera ao fundador do Hospital, ali instalou, assumindo todas as despesas, o asilo que pertencera às Conferências Vicentinas, agora sob a designação de Lar de São José.
[15] Não existindo qualquer arquivo onde se torne possível compilar os dados referentes às partidas e chegadas de emigrantes povoenses em terras brasileiras, temos tentado fazer uma compilação servindo-nos da imprensa local, existente no concelho deste 1885. As notícias de partida e chegadas, bem como as breves reportagens sobre as obras por eles encetadas, os obituários e as notas biográficas, aparecem em grande quantidade, tal a importância do dinheiro do Brasil na manutenção dessa imprensa local. Uma primeira abordagem aos jornais dos últimos quinze anos do século XIX e aos da primeira metade do século XX, permitem-nos hoje calcular em muitas centenas, senão mesmo em milhares, os homens e mulheres que, naturais do concelho da Póvoa de Lanhoso, viajaram para o Brasil ou de lá regressaram. Está hoje provado que, tal como a historiografia portuguesa dedicada à questão tem vindo a afirmar nas últimas décadas, grande parte dos que partiram e que por lá não tiveram sucesso, vivendo tão ou mais pobres que quando partiram, não regressaram pois à pátria, envergonhados, a maioria, do seu insucesso. E, infelizmente, desses não reza a história na imprensa local, o que dificulta um cálculo dos que partiram. Anote-se, como curiosidade, que o concelho da Póvoa de Lanhoso era constituído, em finais do século XIX, por menos de vinte mil habitantes.
[16] Para um melhor conhecimento desta temática, cf. entre muitos outros trabalhos do mesmo autor: Alves, Jorge Fernandes, Atalhos batidos. A emigração nortenha para o Brasil. Atalaia-Intermundos, nº6/7, Lisboa, Verão de 2000, p. 297-308, in http://www.triplov.com/atalaia/alves.html [consulta em 8 de Julho de 2011].
[17] Para um melhor conhecimento da filantropia dos “brasileiros” após o seu regresso a Portugal, cf. Araújo, Maria Marta Lobo de, “Os brasileiros nas Misericórdias do Minho (séculos XVII-XVIII)”, in Araújo, Maria Marta Lobo de (org.), As Misericórdias das duas margens do Atlântico: Portugal e Brasil (séculos XV-XX), Cuiabá (Brasil), Carlini & Caniato Editorial, 2009, pp. 229-260.
[18] Arquivo Distrital de Braga (ADB), assento de nascimentos, livro de Fontarcada referente ao ano de 1845.
[19] Cf. Jornal Maria da Fonte, de 29 de Janeiro de 1928.
[20] Cf. O Brasil, Rio de Janeiro, Edição da Ste de Publicité Sud-Americaine Monte Domec & Cie, 1919 (vol. 1), pp. 51-56.
[21] Cf. Jornal Maria da Fonte, de 29 de Janeiro de 1928.
[22] 5ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, Livro de Registo de Transmissão de Propriedade, inscrição nº 6074, de 1891.
[23] Arquivo Distrital de Braga, Fundos Notariais, Póvoa de Lanhoso, Livro nº 921, fls. 26v-28.
[24] Consulte-se o jornal Maria de Fonte, de 16 de Setembro de 1917.
[25] Consulte-se o jornal Maria de Fonte, de 16 de Setembro de 1917.
[26] Jornal Maria da Fonte de 4 de Novembro de 1917.
[27] Ver jornal diário República de 7 de Fevereiro de 1918.
[28] Cf. Jornal Maria da Fonte de 9 de Setembro de 1928.
[29] Cf. Jornal Maria da Fonte de 9 de Setembro de 1928.
[30] O concelho tinha, nesta altura, cerca de 17.500 habitantes. Cf. Jornal Maria da Fonte de 9 de Setembro de 1928.
[31] Cf. Jornal Maria da Fonte de 29 de Janeiro de 1928.
[32] Cf. Jornal Maria da Fonte de 29 de Janeiro de 1928.
[33] Testamento de António Ferreira Lopes, Arquivo da Santa Casa da Misericórdia da Póvoa de Lanhoso, n/paginado.